Enéas Athanázio
UMA HISTÓRIA SOMBRIA
|
|
O historiador Otto Dov Kulka, nascido na atual República Tcheca e professor
da Universidade de Jerusalém, viveu na infância uma experiência terrível e
que deixou marcas indeléveis na sua alma sensível de criança. Só agora,
depois de tantos anos, conseguiu superar a tristeza e a repulsa que aqueles
fatos lhe causam e colocar as lembranças e reflexões sobre o episódio num
livro que vem obtendo grande aceitação em todo o mundo e foi lançado entre
nós com o título de “Paisagens da Metrópole da Morte”, publicado pela
Companhia das Letras, em tradução de Laura Teixeira Motta (S. Paulo – 2014).
É uma leitura de arrepiar.
Durante a II Guerra Mundial, quando a
chamada solução final do problema judaico funcionava a pleno vapor, em
companhia da mãe, Otto foi retirado do gueto de Theresienstadt e levado para
o campo de extermínio de Auschwitz-Bierknau, na Polônia. Tinha na época
menos de dez anos de idade e encarava aquela situação tomado de imenso
pavor, acentuado pela brutalidade do tratamento recebido. Chegando ao
destino, conduzidos em vagões de trem destinados ao transporte de gado,
cerca de cinco mil pessoas, entre as quais o menino e a mãe, foram
dispensados de inspeção, conduzidos a Bierknau e alojados no chamado “campo
das famílias.” Não tiveram as cabeças raspadas, conservaram as próprias
roupas e as famílias puderam permanecer juntas. Lá encontraram o pai,
recolhido desde o ano anterior. Um verdadeiro milagre que acontecia sem
explicação: eram poupados dos crematórios que funcionavam dia e noite cerca
de trezentos metros daquele local, transformando em cinzas espalhadas ao
vento milhares de pessoas. Foram dispensados do “procedimento padrão.” Era
inacreditável!
Por uma inspiração maquiavélica, digna do cérebro mais
doentio, o bloco dos jovens e das crianças foi transformado num centro
cultural, Enquanto os crematórios ardiam sem cessar, as labaredas subiam das
imensas chaminés e cadáveres sem conta, peles sobre ossos, permaneciam
amontoados por perto, a juventude era educada, encenava peças teatrais,
executava concertos musicais, era preparada para um futuro que todos sabiam
não existir porque dali ninguém saía com vida. Num supremo requinte de
maldade, entoavam em coro a “Ode à Alegria”, de Schiller, louvando a vida e
a fraternidade entre os homens. Os sons das cantorias juvenis escapavam
pelas portas e janelas, repercutindo no silêncio lúgubre daquele campo
infernal. Só muitos anos mais tarde, depois de finda a guerra, aquele
mistério foi explicado. Por sugestão de Eichman, conforme documentos
encontrados, o “campo das famílias” foi mantido por cerca de um ano para
receber a visita dos agentes da Cruz Vermelha Internacional. Consumada a
visita, a população do campo foi exterminada sem apelação. Numa só noite,
cinco mil judeus foram executados. “Assim, a resposta preparada para
satisfazer a todas as possíveis questões sobre o destino dado aos deportados
para o Leste, ou seja, o “campo das famílias” em Auschwitz-Birknau,
tornou-se supérflua. Por isso, menos de três semanas depois dessa visita, na
primeira metade de julho, o campo finalmente foi liquidado” – escreveu o
autor no fecho de sua obra (p. 145). Ele só escapou graças à chegada
intempestiva das tropas soviéticas que libertaram os prisioneiros.
Três momentos se fixaram de forma definitiva nas lembranças do autor. O
primeiro, quando foi separado da mãe e ela conduzida à câmara de gás. O
garoto esperava que ela, ao se afastar, olhasse para trás para vê-lo pela
última vez. Mas ela não olhou e foi se afastando até virar um ponto escuro
na brancura da neve. Só mais tarde ele entendeu que, se ela olhasse,
voltaria correndo para ele. E seria fuzilada sem hesitação pelos guardas
implacáveis. Nunca esqueceu também da surra aplicada a um prisioneiro na
praça central do campo. Quando a cabeça muito branca e raspada recebia os
golpes, um traço branquicento aparecia, logo tomado por uma mancha vermelha
de sangue. E os urros de dor ecoavam no vazio. Jamais esqueceu as execuções
por enforcamento de prisioneiros de guerra em patíbulos armados na praça. Em
redor, formando fileiras em forma de U, todos os prisioneiros eram forçados
a assistir, inclusive as crianças. No momento supremo, um soldado russo
gritou bem alto: Por Stálin! Pela pátria!
Creio que o autor tem
razão. É mesmo impossível esquecer coisas assim.
_____________________________
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(1º de outubro, 2016)
CooJornal nº 1.000
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|