Enéas Athanázio
O mago da palavra
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Importante revista de cunho cultural (*) publicou interessante
reportagem a respeito do escritor João Guimarães Rosa (1908/1967) e que bem
merece um comentário. Sob o título de “O mago da palavra”, alinhou um sem
número de informações de especialistas a respeito do célebre autor do
“Grande Sertão: Veredas”, enfatizando seu gênio criativo e reformador da
língua portuguesa que, segundo alguns, já nem é mais portuguesa, mas
brasileira, tal como a praticamos. Grande linguista e poliglota, tinha uma
formação tão ampla no assunto que conseguia buscar nas raízes históricas e
filológicas os fundamentos dos termos que inventava, tarefa que não é para
qualquer um. Mesmo suas mais estranhas criações encontravam base nas raízes
da língua. E isso, ao lado da imaginação sem limites e de uma incrível
galeria de personagens, tornou sua obra um permanente campo de pesquisas
para os estudiosos e um desafio para os leitores comuns. Segundo seus
biógrafos, falava português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano,
esperanto, um pouco de russo, “sem contar outras tantas línguas nas quais
lia ou pelo menos estudara” (p. 23). É de pasmar!
Nascido em
Cordisburgo, que ele definia como pequenina e sertaneja, lá viveu até os dez
anos, mas ela permaneceu indelével nas suas lembranças infantis. Os campos
das redondezas, as montanhas alterosas, a gruta do Maquiné, a lida dos
vaqueiros com o gado e o meio social e humano nos antigos “pastos da Vista
Alegre” o marcaram para sempre e lá fixaria o epicentro do imenso mundo
ficcional que iria desenvolver em linguagem sofisticada e tão pessoal como
se fosse um léxico próprio dele. Como afirmou um crítico, ele “criou um
universo sem precedentes na literatura brasileira.”
A linguagem que
usou é de grande riqueza, muitas vezes estranha e até hermética. No geral,
porém, basta pensar um pouco e observar o contexto em que foi usada para
entendê-la. Registro aqui alguns exemplos de frases e expressões das mais
curiosas, colhidas ao acaso no correr da leitura. “Cristão não se concerta
pela má vida levável”, o sertão “vai repondo a gente pequenino”, vai se
apoderando como “os tucanos senhoreantes”, “fulão, sicrão, beltrão e romão”,
“eu nada sei, mas desconfio de muita coisa” etc. Algumas expressões
curiosas: sobrechamado (apelidado), fingidades (fingimentos), nonada (coisa
sem importância), prostitutriz (cruzamento de prostituta e meretriz),
enxadachim (trabalhador de enxada), fuifim (pequenino, gracioso), denadar
(nadar rio abaixo, com a corrente), descambiada (descida), desguardo
(descuido), gonçado (desengonçado) etc. São tão numerosas que resultaram em
imensos glossários realizados por especialistas, a exemplo de “O léxico de
Guimarães Rosa”, de autoria de Nilce Sant’Anna Martins, publicado pela EDUSP
(S. Paulo – 2001 – 536 págs.). Segundo a crítica, ela desvendou o mistério
do “rosês”.
Resta, por fim, uma palavra sobre os personagens
roseanos. Creio que raros autores criaram tão vasto rol de personagens como
Rosa, todos bem individualizados e coerentes. Pelo que me lembro, talvez
Balzac e Shakespeare. Quem leu o “Grande Sertão” não esquecerá jamais de
Riobaldo Tatarana ou Urutu Branco, personagem central e narrador da
história, espécie de jagunço-filósofo, como não esquecerá de Diadorim, com
seus olhos verdes e certo “donaire” feminino, por quem um Riobaldo abismado
sente bem mais que o gostar comum do amigo e que guarda um segredo que só a
morte revelará. E a figura incrível de José Rebelo Adro Antunes, o temível
Zé Bebelo, chefe de verdadeiro exército com o qual pretendia extinguir a
bandidagem no sertão e preferia ser apenas cidadão e candidato? E o inimigo
maior, Hermógenes Saranhó Rodrigues Felipes, cujo nome já saiu até em
jornal? E outros, muitos outros que se cruzam e entrecruzam nas longas
páginas do romance, alguns passageiros e fugazes, outros deixando marcas
indeléveis na memória do leitor.
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(*) Revista E, publicação do SESC/SP, número 12,
junho de 2014, pp. 22/26 .
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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(1º de março, 2016)
CooJornal nº 974
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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