Enéas Athanázio
Prisão e liberdade
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Fico sempre surpreso com o interesse de minha neta de onze anos pelos
meus dias de internato. Para ela, a ideia de uma centena de garotos de
várias idades confinados durante meses e anos num casarão imenso é difícil
de apreender. E então começam as perguntas mais inesperadas. Como meia dúzia
de padres conseguia manter a ordem, evitando pancadarias e fugas, é para ela
um mistério indecifrável. Pois se na escola dela, onde só estudam crianças
pequenas, é difícil manter a disciplina, imagine-se num grupo de rapazes
entre os dez e os dezoito anos de idade!
Os dormitórios, indaga ela,
como eram? Explico, então, que havia três: dos pequenos, dos médios e dos
grandes. Todos dormiam em camas-patentes enfileiradas e com um estreito
corredor no meio. Ela se impressiona com isso e, mais ainda, com o fato de
cada um cuidar de sua cama e não se apropriar das roupas dos demais. No
refeitório, ter que rezar em pé e em latim, antes e depois da refeição,
também parece muito estranho. Mais chocante, porém, é ter que comer de tudo
que vem à mesa, sob pena de castigo. Ter que comer berinjela, quiabo,
chucrute, beterraba!? Argh! Isso não! E, ainda por cima, não havia
sobremesa!
Os apelidos aplicados aos alunos fazem a delícia da
menina. Lembro que quase todos recebiam uma alcunha, algumas delas tão
arraigadas que apagavam o nome verdadeiro. Existiam, por exemplo, os
equinos: Cavalo, Cavalinho, Potranca, Asno. Havia os insetos: Grilo,
Gafanhoto, Pernilongo. Havia o Girafa e o Bracatinga, o Palito, o Peru, o
Galo Cego, o Ganso, o Chulé e o Fede-fede. Sobre este último corria um
versinho mais ou menos assim: “Sai daqui, seu Fede-fede/ Vai feder lá no
monturo/ Se aqui tu assim já fedes/ Que dirá na sepultura!” Alguns apelidos
eram indecifráveis, como Sexta-rodela, por exemplo.
Sempre que
chegava um novato, o pobre se via cercado por um grupo de veteranos.
Começavam as perguntas e importunações que deixavam o coitado numa situação
constrangedora, sem saber se ria ou chorava. Apareceu um novato, garoto
típico do interior, trajando calças meia-canela, com chaves e penduricalhos
à cintura, os cabelos arrepiados na nuca. As troças foram muitas, até que
alguém indagou:
- Índio, de onde você surgiu?
E o coitado, num
rasgo de espírito:
- Vim de Nova Iorque!
Foi a conta, ficou
Nova Iorque pelo resto da vida e, depois de formado, mandou colocar na placa
profissional o apelido logo abaixo do nome. Caso contrário ninguém o
identificaria.
O sistema de pontos também a intriga. É que cada aluno
recebia dez pontos por semana. Cada infração que cometia implicava na perda
de pontos e, quanto mais grave, mais pontos ele perdia. Caso perdesse mais
que cinco pontos, perdia também a “saída” do domingo e teria que permanecer
no colégio enquanto os outros perambulavam livres pela cidade. A menina não
se conforma com o sistema, ainda mais que não havia recurso de espécie
alguma. Não adiantavam choramingos e pedidos.
Por outro lado,
permanecer no internato por cinco meses seguidos parece uma ideia que a
agrada. Imagine, ficar tantos dias longe do papai e da mamãe, sem ninguém
para “pegar no pé”! Ninguém implicando com o não faça isso ou faça aquilo.
Isso seria ótimo, enfatiza ela, apesar da saudade que sem dúvida sentiria.
Aquilo que, para nós, constituía uma prisão interminável, com os dias
contados até as férias, para ela seria uma libertação.
Bem se diz que
muitas vezes uma geração ri daquilo que fazia outra chorar. .
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e.atha@terra.com.br
(15 de fevereiro, 2016)
CooJornal nº 972
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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