Enéas Athanázio
PRAGA DE MÃE
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Giovanni Ricciardi, professor da Universidade de Nápoles, viveu algum
tempo no Brasil e manteve contato com nosso meio literário. Aproveitou a
permanência, unindo o útil ao agradável, e realizou entrevistas com mais de
120 escritores de todo o país, depois reunidas em sete volumes com o título
geral de “Biografia e Criação Literária.” O sétimo e último volume foi
dedicado aos escritores do sul, num total de 19, incluindo desde Mário
Quintana, Salim Miguel, Adolfo Boos Júnior, Caio Fernando Abreu, Lia Luft,
Domingos Pellegrini e outros. Em meio a tantas figuras destacadas das
letras, também fui entrevistado e meu depoimento está às páginas 98 a 106. O
livro foi publicado pela Editora da Unisul da Grande Florianópolis em 2009.
As entrevistas são todas interessantes, desvendando o cotidiano dos autores,
e as perguntas, precisas e hábeis, extraindo de cada um verdadeiras
confissões.
Dentre elas, uma das mais longas e minuciosas é a de
Guido Wilmar Sassi (1922/2012). Ele foi um dos mais importantes escritores
catarinenses do século passado, havendo até quem o coloque em primeiro
lugar. Pela qualidade e pelo volume da obra, inclino-me a concordar com
estes últimos. Romancista, novelista e contista, foi um autodidata de grande
erudição, escrevia bem e era dotado de agudo senso de humor. Ele próprio se
considerava um homem temperamental e violento, ainda que contido em seus
ímpetos. Não o conheci em pessoa, ou melhor, não me lembro dele, embora ele
se lembrasse de mim, ainda garoto, carregado pelo “seu” Urbano, um
louco-manso que meu pai protegia e abrigou numa casinha aos fundos de nosso
lote. Chegamos a trocar algumas cartas e escrevi várias vezes a respeito
dele e sua obra.
Exigente e minucioso, Guido tinha um processo
criativo complexo. Relata que fazia mapas dos locais, plantas de casas,
genealogia dos personagens e pesquisas completas sobre os temas antes de
começar a escrever. Tudo anotava num caprichado fichário. Ao longo da
carreira “rompeu” com a literatura e passou 16 anos sem escrever. Nessa
época, em carta, ele me dizia que ao avistar um escritor atravessava a rua.
Tinha fases de intensa produção e outras de total inércia. Não tolerava
escrever obrigado e, menos ainda, com prazos e temas determinados. Gostava
de escrever quando tinha vontade.
Tratava-se, portanto, de um
processo exaustivo e prolongado, razão pela qual relutava em começar a
escrever porque, uma vez iniciada a criação, seria impossível parar.
Detestava a solidão, abominando até mesmo a palavra, e considerava o ato de
escrever um terrível período de isolamento forçado. Diante disso, afirmou
certa vez que a vocação para escrever era praga de mãe, a pior que existe, e
a profissão do escritor um ror de sofrimentos. Foi vaiado e xingado.
Fatalista, Guido fixou até a data em que desejaria morrer, em 2014, durante
o sono. Mas a Parca não concordou e o levou dois anos antes do combinado,
como diz o Boldrin.
Após tantos anos de luta árdua com a palavra,
ele se mostrava desanimado com a literatura nacional e, acima de tudo, com a
pequena quantidade de leitores em nosso país. Como dizia meu padrasto, ao me
ver às voltas com as letras, escrever no Brasil é como produzir chapéus para
um povo sem cabeças. Enaltecido pela melhor crítica, traduzido e publicado
no exterior, autor de uma obra em que criou o “ciclo do pinheiro”, detentor
de prêmios destacados, Guido revelava nas entrelinhas a melancolia de não
ser consagrado em nosso Estado. Como na política, autor que não se consagra
em sua terra nunca alçará voo no cenário nacional. E aqui as coisas não
acontecem bem assim. Talvez por isso ele declarasse se sentir um corpo velho
de alma maltratada.
Nascido em Lages, Guido viveu em Campos Novos
entre os 7 e os 18 anos, período que considerava o melhor de sua vida. Lá na
terrinha, num sótão lúgubre, lia a Bíblia, sem saber o que era, e um velho
dicionário que não tinha capa e nem autor. Ali o menino começou a tomar
gosto pelas letras. E foi ambientado em Campos Novos, no Poço da Bica, que
produziu seu derradeiro conto, a mim dedicado: “O Naufrágio do Black-Ship.”
Está publicado na coletânea “Este mar Catarina.”
O romance “Geração
do Deserto” foi vertido para o cinema por Sylvio Back com o título de “A
Guerra dos Pelados.” Dentre os contos de Guido, considero “Noite” e “Amigo
Velho” obras-primas da melhor contística nacional. A entrevista dele, aqui
comentada em largos traços, é uma grande lição de literatura e de vida.
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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(1º de dezembro, 2015)
CooJornal nº 962
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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