Enéas Athanázio
O AMIGO ESCRITO DE MONTEIRO LOBATO |
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“Não somos amigos falados, somos amigos escritos.” Monteiro Lobato
Godofredo Rangel (1884/1951) foi colega de Monteiro Lobato numa “república”
de estudantes, na época em que ambos estudavam Direito nas “Arcadas”, em São
Paulo. Era um pequeno chalé, situado no bairro do Belenzinho, até hoje
existente, e que entrou na história literária como Minarete, assim apelidado
pelo poeta Ricardo Gonçalves. Os dois futuros escritores pouco conviveram e
depois se separaram, cada qual seguindo seu destino. Rangel ingressou na
magistratura mineira e Lobato, depois de ter sido Promotor Público, virou
fazendeiro, editor e, por fim, escritor profissional. Poucas vezes se
encontraram no correr da existência mas, em 1903, iniciaram uma
correspondência literária que durou 44 anos e foi reunida, em parte, nos
dois volumes de “A Barca de Gleyre”, de Monteiro Lobato. (Hoje a Editora
Globo reuniu num só volume). As cartas-respostas de Rangel nunca foram
publicadas e nem se sabe se ainda existem. Pouco antes de falecer ele
renovou a proibição de sua publicação, de forma que “A Barca” ficou para
sempre um livro incompleto em que só um lado fala e o outro permanece em
silêncio. Como biógrafo de Rangel, muito batalhei pela publicação dessas e
outras cartas mas não tive sucesso e elas continuam inéditas, talvez para
sempre.
Godofredo Rangel foi romancista, novelista, contista,
cronista, crítico, gramático e tradutor. Sua obra é pouco volumosa mas de
grande qualidade, fato ressaltado pela melhor crítica da época. Não foi,
porém, um homem bafejado pela sorte.
Apesar de seu talento, Rangel
nunca obteve os favores da boa sorte. Diria mesmo que foi vítima de muitos
azares.
Embora magistrado de carreira, passou a vida a braços com
dificuldades financeiras, obrigando-se a traduzir sem parar e a realizar
tarefas abomináveis para um escritor, como lecionar escrituração mercantil e
fazer a contabilidade de uma usina elétrica, o que levou Lobato a apelidá-lo
de “eletricista do Sapucaí.”
Além disso, sua vida conjugal parece
ter sido conturbada desde o início, como se percebe de certas passagens dos
escritos lobatianos. É admirável que, em circunstâncias tão adversas,
pudesse escrever obra tão esmerada.
A excessiva proximidade de
Lobato, a quem se ligou desde a mocidade, também foi prejudicial. Como a
árvore normal que tem por destino nascer à sombra do frondoso carvalho,
Rangel acabou ofuscado pela glória literária do amigo. Percebendo isso,
Lobato tudo fez para divulgar e enaltecer a obra rangelina.
A intensa
repercussão provocada por “Vida Ociosa”, seu romance de estreia, publicado
em 1920, por paradoxal que pareça, também o prejudicou. Esse fato, aliado ao
grande hiato ocorrido até a publicação de seus livros posteriores, levou os
críticos a analisarem sua obra com base exclusiva no romance de estreia,
abstraindo do restante e dando uma visão distorcida da realidade. Foi o que
ocorreu em quase todos os trabalhos que tenho encontrado, sendo raras as
exceções. O próprio Wilson Martins, nos seus impiedosos ataques a Rangel, me
deixa a nítida impressão de que sua opinião é formada apenas por “Vida
Ociosa”. Assalta-me séria dúvida de que tenha lido os demais livros do
escritor.
Wilson Martins, aliás, nos seus livros e artigos, decretou
a segunda morte de Rangel – a literária. Depois de suas demolidoras
palavras, a meu ver injustas, poucas pessoas se abalançarão a ler, comentar,
ensinar ou publicar Godofredo Rangel. É uma empreitada inglória tentar
trazê-lo de volta ao cenário das letras. Sei disso de experiência própria.
Rangel, como já disse, proibiu a publicação das cartas enviadas a
Monteiro Lobato e que seriam “o outro lado” de “A Barca de Gleyre.” Sua
família, no entanto, parece ter estendido essa proibição indistintamente a
todas as cartas escritas por ele, impedindo assim o conhecimento melhor da
obra e da personalidade do romancista. Nunca consegui entender os temores
que tais cartas possam provocar. Rangel, pelo muito que li e ouvi sobre ele,
era um homem de bem e nada teria a esconder.
Lembro ainda que,
quando Secretário da Cultura de Minas Gerais, José Aparecido de Oliveira se
empolgou com meu trabalho e se propôs a editar a biografia, revista e
corrigida, agora com o título de “O Amigo Escrito.” Enviei o texto original
e diversas ilustrações ao referido secretário. Nesse meio tempo, porém, foi
nomeado governador do Distrito Federal e perdi contato com ele. O novo
secretário não se interessou pelo assunto e o resultado foi a perda dos
originais e ilustrações nos escaninhos da burocracia. Segundo informações
oficiais, o material entrou na Imprensa Oficial do Estado, onde foi
protocolado, e desapareceu sem deixar vestígios, até hoje. Desconfiado das
tocaias burocráticas, eu havia tirado cópias de tudo e o livro acabou
publicado, mais tarde, pela Secretaria da Cultura aqui do Estado (1988).
Edição grande, embora modesta, hoje esgotada.
Como se isso tudo não
bastasse, os originais da nova edição de “Vida Ociosa”, preparados com
esmero pela Fundação Casa de Rui Barbosa, tardaram a encontrar editor.
Perambularam de ceca em meca, de editora em editora, de mão em mão, até que
o livro foi lançado por pequena editora carioca, novata e inexperiente.
Brochurinha sem expressão, acrescida de um prefácio oportunista, não teve a
menor repercussão. E o pobre Rangel continua tão esgotado como antes. O
livro trouxe um posfácio meu.
Seja como for, minha contribuição foi
dada e acredito que o essencial está em meus livros, ensaios e artigos.
Penso que alguma novidade que acaso surja não alterará o que foi registrado.
Será detalhe secundário.
Vários autores de teses e monografias têm
solicitado, ao longo dos anos, informações sobre Rangel e sua obra,
revelando interesse pelo autor de “Os Bem Casados.” São fatos auspiciosos,
revelando que, apesar de tudo, a obra de autoria dele ainda encanta a muitos
leitores.
Quantos livros foram traduzidos por Godofredo Rangel? Eis
aí uma pergunta com a qual me deparo com frequência e cuja resposta, nesta
altura, parece impossível. Seu filho, o Prof. Nello Rangel, afirmava que
andavam perto de uma centena, do inglês, do francês e do italiano. Mas a
verdade é que, mesmo com a ajuda dele e de outros amigos, só foi possível
relacionar até agora 61 obras, incluindo algumas que foram revistas por ele,
número aproximado com o qual concordou Raimundo de Menezes em seu
“Dicionário Literário Brasileiro.” Monteiro Lobato, em carta de 17 de
setembro de 1941, escreveu o seguinte: “Sessenta livros já traduziu você!
Tremendo!” (A Barca de Gleyre, pág. 337). Como Rangel ainda viveu por dez
anos e trabalhou até o fim da vida, é presumível que muitos outros livros
tenham sido por ele traduzidos após a carta de Lobato.
A relação atualizada até hoje é a seguinte: 1 - “A cura pelo pensamento”
- Sachet 2 – “A tragédia de minha vida” – Oscar Wilde 3 - “Oscar
Wilde, sua vida e confissões” – Frank Harris (Cia. Editora Nacional - 1939)
4 – “Alice no país das maravilhas” – Lewis Carrol 5 - “A crise de nossa
civilização” 6 - “As irmãs brancas” 7 – “A ciência da natureza humana”
– Alfred Adler 8 – “Bem aventurados os humildes” 9 – “Corsário
vermelho” 10 – “Como pensamos. Como formar e educar o pensamento” – John
Dewey (Cia. Editora Nacional – Biblioteca Pedagógica Brasileira – 2ª. ed. –
1953). 11 – “A vida de Disraeli” – André Maurois (Cia. Editora Nacional –
Coleção Vidas Célebres – 1936). 12 – “Democracia e educação” – John Dewey
(em co-autoria com Anísio Teixeira) 13 – “Geografia pitoresca para
crianças” – V. M. Hillyer (Cia. Editora Nacional – S. Paulo – s/data) –
Tradução e adaptação 14 – “História da filosofia” – Will Durant (em
co-autoria com Monteiro Lobato) 15 – “História da civilização” – Will
Durant (ambos da Cia. Editora Nacional) 16 – “Pequena história do mundo
para crianças” – V. M. Hillyer (Cia. Editora Nacional – S. Paulo – 1951) –
Tradução e adaptação 17 – “História dos Estados Unidos” – André Maurois
18 - “Maravilhas da medicina” – Dietz 19 – “Lógica” – L.Liard (Cia.
Editora Nacional – 1950). 20 – “Madre Cabrini” 21 – “Noites de
vigília” – A. J. Cronin (A Editora José Olympio registra como tradução de
Gulnara Lobato de Morais Pereira). 22 – “O caminho da felicidade” – Dr.
Victor Pouchet (Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas)
23 – “Os filhos” – Dr. Victor Pouchet (Editora Civilização Brasileira –
Série Obras Educativas) 24 – “Sede otimistas” – Dr. Victor Pouchet
(Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas) 25 – “O
apóstolo” – Sholem Asch 26 – “Porque os homens falham” – Drs. M. Fishben
e W. A. White (Estudos de onze psiquiatras americanos – Editora Civilização
Brasileira - Série Obras Educativas) 27 – “Vida de Santo Agostinho” –
Giovani Papini 28 – “Sete homens e uma mulher” 29 – “Vida de
Metternich” – Salvador de Madariaga 30 – “Vida de Colombo” – Salvador de
Madariaga 31 – “Zola e seu tempo” – Mathiew Josephson 32 – “Os judeus
e nós os cristãos” – Oscar de Férenzy (Cia. Editora Nacional, 1939) 33 –
Beaumarchais (ignora-se o nome da obra) 34 – Victor Hugo (idem) 35 –
“A mulher” – Michelet (Primeira tradução, deveria chamar-se “O Amor”, sendo
o título trocado por equívoco) 36 – “O it” – Elinor Glyn (Cia. Editora
Nacional, julho de 1940) 37 – “Enquanto é tempo de amar” – Florence L.
Barclay (idem, 1944) 38 – “Vendida” – W. Heimburg (idem, 1935) 39 – “O
outro milagre” – Henry Ardel (idem, s/d) 40 – “O sheik” – E. M. Hull
(idem, s/d) 41 – “O filho de Tarzan” – Edgar Rice Burroughs (Cia. Editora
Nacional – Coleção Terramarear – Vol. 24, 1935) 42 – “Tarzan, o rei da
jângal” – Edgar Rice Burroughs (idem, idem – Vol. 37, 1935) 43 – “O
fantasma de Sandokan” – Emílio Salgari (idem, idem – Vol. 46, 1936) 44 –
“A ilha de coral” – R. M. Ballantine (idem, idem – Vol. 10, 1936) 45 –
“Perdidos no deserto” – Mayne Reid (idem, idem – Vol. 47, 1936) 46 – “O
homem do Hotel Carlton” – Edgar Wallace (Cia. Editora Nacional – Série Negra
– Vol. 2, 1934) 47 – “A porta dos traidores” – Edgar Wallace (idem, idem
– Vol. 20, 1936) 48 – “As cruzadas” – E. Barringtin (Cia. Editora
Nacional – Coleção Paratodos, 1933) 49 – “As cruzadas” – Harold Lamb
(Cia. Editora Nacional – 1936) 50 – “Scaramouche, o fazedor de reis” –
Rafael Sabatini (idem, idem, Coleção Paratodos, 1936) 51 – “O pimpinela
escarlate” – Baronesa Orczy (idem, idem, 1934) 52 – “O clube dos
suicidas” – R. L. Stevenson (idem, idem, 1933) 53 – “Talleyrand” – Duff
Cooper (Cia. Editora Nacional – 1945) 54 – “A felicidade ao seu alcance”
– Dr. Toulouse (Editora Civilização Brasileira – Série Obras Educativas -
1950) 55 – “Sede um dominador” (Ensaio sobre a educação das faculdades
superiores e sobre a aptidão para o mando – Editora Civilização Brasileira –
Série Obras Educativas) 56 – “O guia da saúde” – Mahatma Gandhi (Editora
Civilização Brasileira – Série Obras Educativas) 57 – “A esposa que não
foi beijada” – Berta Ruck (Cia. Editora Nacional – 1932) 58 – “Amor e
casamento” – Marie Carmichael Stopes (Cia. Editora Nacional – la. Ed. –
1929) 59 – “A história do futuro” – H. G. Wells 60 – “Uma noiva em
leilão” – Concordia Merrel (Cia. Editora Nacional – Tradução revista por
Rangel – s/d). 61 – “História do poderio marítimo” – W. O. Stevens e A.
Westcott (Cia. Editora Nacional -Tradução revista por Rangel – s/d).
É fácil imaginar o quanto de esforço intelectual foi exigido para realizar
tais traduções, muitas delas de obras complexas e volumosas. Como asseverou
o crítico Fernando Góes, “Gastou-se traduzindo infatigavelmente uma série
enorme de livros de toda a espécie, o que, por certo, impediu-lhe de
construir a obra que Lobato esperava de seu engenho.” É claro que Rangel
tinha consciência disso mas os minguados proventos da magistratura da época
impunham esses e outros sacrifícios.
A relação é muito incompleta e
qualquer informação no sentido de completá-la será bem recebida. Carlos
Heitor Castello Branco, José Afrânio Moreira Duarte e Trajano Pereira da
Silva forneceram valiosas contribuições.
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e.atha@terra.com.br
(15 de novembro, 2015)
CooJornal nº 960
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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