Enéas Athanázio
CRÔNICA DIFICIL |
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Quando eu chegava em Campos Novos, ele era o primeiro a aparecer. Parecia
farejar minha presença. Avistando-me, já abria os braços, e exclama com
indisfarçável sentimento: "Ô Ineias! Que saudade!" E me abraçava com
euforia. Não me largava enquanto eu andasse por lá.
Logo que me formei,
quando montei minha banca na terra natal, fui morar no casarão que
pertencera aos meus avós, povoado de lembranças e, talvez, de alguns
fantasmas que, para sorte minha, eram benignos e nunca me incomodaram. Ele
então passava uns tempos comigo, quando saíamos para alguma visita às boates
do "Pinheiro Ralo", uma ou outra festa ou para fazer o "footing" no jardim.
Uma lembrança que me ficou dessa época foi o seu desejo de se declarar em
inglês à amada do momento. Passei muito tempo tentando ensinar-lhe o "I love
you, miss!", sem o menor sucesso. Ele repetia minhas palavras, mas quando
tinha que dizer sozinho não passava do "I" e logo indagava: "Como é que é
mesmo?...", até que esquecemos da tal manifestação amorosa. Teria que tentar
a conquista na velha língua dos portugas. Mas, pelo que me consta, aquele
amor nunca se realizou. Escavando a memória,
não consigo lembrar quando nos conhecemos. Tenho a sensação de que isso
acontecia dês que o mundo é mundo. Frequentava a chácara dos pais dele desde
criança, onde me fartava de frutas e das historias de Dona Cecilia, sua mãe,
especialista em "causos" de visagens e banditismos dos tempos de dantes. Tio
Tino, pai dele, fora amigo inseparável do meu. Muitos anos mais tarde, seus
olhos ainda marejavam quando falava do amigo tão cedo desaparecido. F oi,
pois, uma amizade de duas gerações.
Muito cedo, garotos ainda, estávamos
sempre juntos nas minhas férias. Nosso tempo era usado nas andanças pelas
fazendas, nos banhos no Poço da Bica, nas caçadas de tatus para os lados da
Restinga, nos namoricos e nas caminhadas sem rumo. Mais tarde, nos tempos de
atividade profissional e politica, foi meu companheiro de viagens, vivendo
aventuras que "dariam um romance." Enquanto batuco estas mal traçadas,
lembro-me de episódios que me levam a rir sozinho.
Numa noite fria,
quando proseava num bar, alguém teve o desplante de falar mal de mim,
candidato na ocasião. Nada de gravidade, bobagens de adversário, mas foi a
conta: ele reptou o sujeito para que repetisse e, como ele o fez,
quebrou-lhe o cavaquinho na cabeça. Armou-se tremendo sururu e ele foi
processado. Está claro que fui seu defensor, sustentando a tese da legítima
defesa da honra de terceiro, que era eu próprio, no caso. Apesar da insólita
argumentação, foi absolvido, mesmo porque o juiz não conseguia esconder a
simpatia por ele.
Alguns anos atrás, esteve uns dias aqui em casa.
Andamos pela cidade, pelo litoral, pelas areias da praia. Proseamos como nos
velhos tempos, noites a dentro, rindo à lembrança de alguns acontecidos.
Tudo documentei em fotos, como se previsse algo, e ele mostrava a todos, lá
na terrinha, o álbum da sua vilegiatura litorânea. Foi a ultima vez em que
nos vimos!
Seu nome de batismo era Osvaldino Sanford Lemos, embora
também fosse conhecido por Nenê, como o tratava Dona Cecília, Libino, Liba e
Tio Liba, alcunhas de esotérica origem, mas principalmente pela última,
aquela que mais se vulgarizou.
Numa noite comum, dessas que nada
prometem, eis que chegou a noticia, seca e dura como são as más notícias:
Tio Liba havia falecido durante uma cirurgia cardíaca, em Curitiba, e já
fora sepultado. Ninguém se lembrou de me avisar e não pude lhe dar um último
adeus. Fiquei estatelado na cadeira, assombrado, incrédulo. Ele não existia
mais e um novo vazio surgia na terrinha, de cuja paisagem urbana ele fazia
parte, como as velhas arvores e caramanchões do jardim, as ruas largas e
retas. E ainda por cima, morreu em cidade grande e estranha, que tanto
detestava, cercado por desconhecidos. A terrinha nunca mais será a mesma e
imagino como será visita-lo no lugar onde "estuda a geologia do campo
santo", como dizia mestre Machado de Assis. Será tão difícil como escrever
estas linhas, alinhavando a mais difícil crônica que já escrevi. Espero,
porém, que de algum recanto entre o céu azul e o verde tapete dos campos ele
esteja acompanhando meus passos como fazia sempre que eu andava por lá.
Adeus, amigo!
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e.atha@terra.com.br
(15 de agosto, 2015)
CooJornal nº 948
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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