Enéas Athanázio
LIMA BARRETO E O TEATRO |
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Faceta pouco analisada da obra de Lima Barreto (1881/1922) é a que diz
respeito ao teatro. É verdade que não é muito o que ele escreveu sobre e
para teatro, não chegando a constituir uma porção considerável no universo
de suas Obras Completas, conforme são hoje publicadas. Mas, como intelectual
bem informado e dotado de espírito universalista, a arte cênica esteve
sempre nas suas cogitações. Suas páginas no gênero, embora pouco numerosas,
revelam que pensava no assunto, estudava-o à sua maneira e tinha ideias
sobre ele.
Folheando os livros de sua autoria, encontramos alguns textos
bem representativos, espalhados aqui e ali. No artigo “Sobre o nosso teatro”
(1), começa declarando que não era frequentador assíduo das plateias, não
porque negasse valor e talento aos autores e artistas, mas em virtude do mau
gosto do público, incapaz – no seu entender – de bem julgar e valorizar as
peças encenadas na época. Episódios que cercavam o teatro daqueles dias, e
que ele acompanhava com atenção pela imprensa, pareciam irritá-lo muito. O
puritano que era, ainda que com aparência de boêmio, não gostava das
“fofocas” inevitáveis no meio teatral e que constituíam justamente a delícia
de grande parte de seus frequentadores.
Algumas passagens parecem indicar
que o teatro, para ele, eram os grandes espetáculos, com elenco numeroso,
roupagens e cenários ricos, muita luz e ação. “O teatro é por excelência uma
arte da sociedade, de gente rica – escreveu. – Ele exige vestuários caros,
joias, carros – tudo isso que só se pode obter com a riqueza. Pois os ricos
da Bruzundanga não animam as tentativas que se têm feito para fazer surgir
um teatro indígena, todas têm fracassado” (2). Nesse trecho ele renova as
críticas ao público e deixa claro que não o agradavam as peças mais
modestas. Mas, por outro lado, as dificuldades econômicas de hoje confirmam
de certa forma sua afirmação, eis que proliferam as encenações com poucos
personagens em que às vezes nem o cenário muda.
Em “Sobre o teatro” (3) e
“Abertura do congresso” (4), volta a abordar o tema. Neste último artigo,
ironizando o “reconhecimento” dos deputados na República Velha, monta uma
cena teatral, embora isolada, num cassino, onde se ouvem o bater das fichas
de madrepérola de mistura com vozes femininas de sotaques estrangeiros bem
carregados. Como sempre que se dispõe a criticar, sua pena carrega nas
tintas e desenha um episódio grotesco. No conto “Uma noite no Lírico” (5), a
presença do teatro não sai do título.
Como autor teatral, porém, Lima
Barreto ensaiou apenas duas tentativas. Suas memórias e registros, em geral
tão minuciosos, não esclarecem a razão de ter produzido tão pouco no gênero.
Talvez não tenha lhe sobrado tempo, pois sua vida foi breve.
“Casa de
Poetas” e “Os Negros” constituem suas únicas obras no gênero. A primeira é
uma comédia leve, em apenas um ato e com cinco personagens, que decorre numa
única sala. Lima Barreto, na prática, renega sua teoria e desenvolve as
ações das figuras numa só peça de uma casa carioca. O diálogo é vivo,
correntio, mesmo que surjam algumas palavras muito de seu gosto
(dunquerques, donaire, bibelots, dous, cousa etc.). Mas o humor está
presente, em especial no inesperado do desfecho e na ingenuidade do Dr.
Clarimundo.
“Os Negros”, ao longo de sete páginas, aparece como uma
tragédia das tantas inspiradas pela escravidão, instituição cuja lembrança
horrorizava o autor. Os personagens são todos negros fugitivos da fazenda,
alguns definidos apenas pela sua condição (velho, negra, moça, criança), num
cenário mais pretensioso, ao ar livre. No diálogo surgem lembranças da
pátria remota e da vida mais próxima, no eito. Mas o enredo parece mal
desenvolvido, apenas debuxado, tanto que o autor põe como subtítulo uma
indagação: “Esboço de uma peça?”
Ambos os textos constituem hoje a parte
final do volume denominado “Marginália” (6). Creio não errar, com base na
leitura dessas páginas, afirmando que Lima Barreto, se tivesse realmente
desejado, teria alcançado destaque nesse gênero, tal como aconteceu no
conto, na crônica e em especial no romance. A obra de Lima Barreto tem
servido de inspiração para os autores teatrais, embora não tanto como seria
de esperar de textos de tal conteúdo humano e carga emocional. O “Grupo
Mostrai que Mostrais” teatralizou o romance “Numa e a Ninfa”, que pude
assistir na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Com boa adaptação,
a peça tinha seu ponto algo na figura de Lucrécio Barba-de-Bode, um dos
personagens mais curiosos e autênticos da prosa limabarreteana. O sucesso da
peça foi imenso e permaneceu muito tempo em cartaz. Infelizmente, o
talentoso grupo desapareceu, como outros tantos.
A mais arrojada
tentativa de teatralizar a obra de Lima Barreto, no entanto, é de autoria de
Buza Ferraz e, pelo que me consta, até hoje não foi publicada. Trata-se da
adaptação do “Triste fim de Policarpo Quaresma”, obra-prima do escritor
carioca, para uma grande companhia teatral. Num trabalho fiel e primoroso, o
adaptador transformou em verdadeira peça teatral a história amarga desse
homem que, por ser patriota, acaba sendo fuzilado. Embora pareça impossível,
os diálogos bem conduzidos, usando da melhor forma as palavras e imagens do
próprio romancista, aumentam o impacto de muitas passagens, especialmente no
desfecho. A curiosidade crescente vai se misturando à revolta e à
comiseração, numa confusão de sentimentos que só as boas obras literárias
conseguem provocar. O texto adaptado mantém bem viva a “arraia-miúda”
que o romance retrata: funcionários subalternos, gente suburbana, a pequena
classe média dos tempos da República Velha. Ali aparecem tipos como o
tocador de violão Ricardo Coração dos Outros (inspirado em Catulo da Paixão
Cearense), o general Albernaz (que vivia e recordar combates onde não
esteve), Maria Rita e outros tantos.
O romance também foi adaptado para o
cinema. O filme “Policarpo Quaresma” é um marco da cinematografia nacional.
Esse livro mais que centenário, escrito por Lima Barreto em 1911, foi a
definitiva consagração do autor. Seu aproveitamento pelo teatro é uma forma
de valorizá-lo como merece e, ao mesmo tempo, elevar o nível da arte cênica
nacional.
(Artigo publicado em “Caixa de Pont(o)”, primeiro e único
jornal dedicado ao teatro publicado em Santa Catarina, editado por Marco
Vasques e Rubens da Cunha, cujo lançamento aconteceu em maio, em
Florianópolis).
________________ As fontes indicadas correspondem às
Obras Completas de Lima Barreto publicadas pela Editora Brasiliense (S.
Paulo). (1) “Bagatelas”, pp. 221/227; (2) “Os Bruzundangas”, pp.
110/111; (3) Idem, pp. 160/161; (4) “Marginália”, pp. 223/225; (5)
“Histórias e Sonhos”, pp. 225/230; (6) “Marginália”, p. 292.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(15 de junho, 2015)
CooJornal nº 940
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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