Enéas Athanázio
HISTÓRIAS DE GENTE COMUM
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Comprovando que gente comum do povo também pode
viver experiências interessantes, Antônio Francisco de Jesus, mais conhecido
como Saracura, publicou um livro delicioso e que já se encontra na terceira
edição. Trata-se de “Os Tabaréus do Sítio Saracura”, romance memorialístico,
de fundo histórico e documental, em que o autor recria a saga da numerosa
família Saracura, descendente de judeus holandeses e índios nativos da
região, habitante das cercanias de Itabaiana, cidade do agreste sergipano
onde acontece célebre feira livre, dessas que vendem de tudo e mais um
pouco, autênticas festas populares espontâneas e sem ensaios. Escrito em
linguagem simples e direta, sem subterfúgios ou digressões desnecessárias, o
livro revela um autor que não condescende e não se furta a observações
duras, quando necessário. Em compensação, há inúmeros momentos engraçados,
daqueles que provocam boas gargalhadas, e outros tantos de pura e
enternecedora poesia.
Partindo de suas próprias lembranças dos tempos
de criança nos sítios paterno e do avô, onde imperavam homens opiniáticos e
decididos a lutar contra as adversidades do meio hostil, com suas terras
fracas e secas inclementes, vai o autor relatando os mais curiosos detalhes
da vida sofrida daquele povo. A infância terminava cedo, por volta dos sete
anos, quando as crianças já eram postas a trabalhar. A escola, por sua vez,
só funcionava em parte do ano, no período em que o braço infantil podia ser
dispensado do serviço. E os métodos de trabalho e produção se mantinham
arraigados e conservadores, salvo quando alguma inovação se impunha. Eram
incríveis os malabarismos de que lançavam mão para sobreviver nos piores
períodos, todos aprendidos a duras penas com a experiência dos antecessores.
Mas tudo isso não impedia a realização de festas, ajuntamentos, encontros em
bodegas e pequenas viagens, sempre com a alegria e a disposição fatalista de
que as coisas são assim e não há como alterá-las. As visitas do garoto ao
sítio do avô são relembradas como momentos de intenso prazer e alegria.
O livro é muito rico no registro dos usos e costumes regionais,
mostrando quão vasta é a cultura popular brasileira. Alguns desses relatos
são dos mais curiosos e o autor os descreve com grande fidelidade. No
período da quaresma, por exemplo, surgiam os grupos de alimentadores de
almas. Durante a noite, ao som de uma matraca, iam batendo de porta em porta
e acordando os moradores com suas rezas e cantorias. Época houve, relata o
autor, em que tantos eram os grupos que uns atrapalhavam os outros. Presumo
que havia alimentadores demais para almas de menos. Segundo velho costume,
durante a semana santa as raparigas amigadas nada podiam comer por conta do
amásio, caso ele vivesse com a família legítima. As amigadas, então, saíam
de porta em porta pedindo ajutório para alimentar a casa, e isso “desde a
quarta-feira de cinzas até o domingo da ressurreição.” Ainda no capítulo das
curiosidades, lembra que a colméia de abelhas alojada no oitão da casa se
mudou em definitivo e de maneira espontânea, com o falecimento do dono. “Se
não for colocada uma faixa de pano de luto sobre cada cortiço logo após a
morte do dono, as abelhas abandonam suas casas e somem no mundo” (p. 50).
Por outro lado, segundo diziam, seria costume guardar o dinheiro, em geral
moedas, em recipientes que eram enterrados em lugares secretos. Comentários
nesse sentido também corriam aqui no Sul sobre as cobiçadas “panelas” de
dinheiro que muitos procuravam. Segundo o autor, a alma do morto não
descansava enquanto ele não revelasse a alguém o local onde enterrou o seu
tesouro Só então sairia da penitência! Não será demais lembrar o gosto do
povo pelas apostas. Apostava tudo, até mesmo a quantidade de espirros que o
padre alérgico daria durante o sermão! Muitos outros fatos poderiam ser
referidos, mais não caberiam no espaço deste simples comentário.
Resta uma breve referência ao linguajar regional, mostrando, mais uma vez, a
riqueza imensa que nossa língua alcançou no país. As falas da expressão
regional, nascidas da criatividade popular, são infinitas e deliciosas.
Corrobolo, mangado, malinando, quarto de breguesos, rincha de preguiça,
breguedela, camaço, jabo, melecando, revém, xurrear, eis alguns exemplos do
falar brasileiro colhidos ao acaso no texto.
Três momentos da
narrativa são de grande beleza. O primeiro se dá quando tia Jovita, velha,
fraca e doente, ainda que se arrastando e penando a maior miséria, decide
mendigar em povoados longínquos e desconhecidos. Mesmo na situação em que se
encontrava, sua dignidade não suportaria mendigar aos conhecidos. A
humilhação e a vergonha seriam superiores à sua fome! Em outro momento
dramático, o sertanejo impotente vê a seca avançar sem nada poder fazer. O
verde vai perdendo o viço, as ramas se esturricam, as fontes secam, a poeira
paira no ar parado e o céu azul só promete sol e mais sol. E então, “o que
era plantado com gosto, a própria natureza que deveria ajudar a crescer,
destruía sem dó, como um vencedor impiedoso diante do frágil derrotado” (p.
112). Por fim, a triste melancolia do cacique que desejava rever em vão a
filha e os netos. Expulso para os ínvios confins daquelas terras que antes
foram suas e fugindo dos caçadores de escravos, ele contempla esperançoso do
meio do mato enquanto a noite se arrasta. “Milhares de sons e tons, num
concerto fantástico, varam a noite sem intervalo, cobrindo o espelho líquido
de bolhas de espuma, que depois explodem em novos pequenos músicos,
garantindo a eternidade do coro de louvor ou a sentinela ao triste guerreiro
índio” (p. 102). E pela manhãzinha o cacique retornava aos seus grotões,
ainda mais triste por não ter avistado os seus.
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Contato com o Autor
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(15 de janeiro, 2015)
CooJornal nº 920
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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