Enéas Athanázio
CONTOS SERTANEJOS
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A leitura dos contos de
Afonso Bezerra (1907/1930) revela um caso literário dos mais curiosos (*).
Escritor de linguagem clássica, erudita, às vezes até rebuscada, é, no
entanto, autêntico regionalista, embora mais de fundo que de forma – como
diria o crítico Lauro Junkes. Dois trechos que transcrevo a seguir servem
para demonstrar a linguagem e o estilo. “O sol no seio de um terreno
escampado, sem o amparo agradável das sombras compactas, numa profusão
satânica de chispações ardentes, envolvia tudo numa temperatura de fogo, e
ressequia a laringe e estalava os lábios de quem caminhasse a pé, àquelas
horas, ao beijo ígneo de seus raios” (p. 35). E mais: “A natureza como que
experimentara um colapso formidando, A terra toda tremeu, agitada por uma
como convulsão titânica dos elementos. Consumara-se um deicídio” (p 39). São
frequentes frases de sabor erudito e de uso comum entre os escritores
clássicos: “ainda de uma feita”, “vai se não quando”, “vim a dar acordo de
mim” etc. Sou tomado pela sensação de estar relendo os textos reunidos na
célebre antologia de Carlos de Laet. Aliás, é admirável que um escritor tão
jovem, falecido aos 23 anos incompletos, já manejasse um linguajar tão
apurado.
Não obstante, ele semeou termos e expressões regionais no texto, num
casamento de aparência impossível, mas que se consumou. Dosou tais elementos
de forma contida, sem exageros, e conseguiu reproduzir a linguagem do sertão,
onde quase todos os contos estão ambientados. O sertão, como palco dos
acontecimentos, aparece descrito de maneira perfeita e o leitor chega a
sentir o calor intenso, a secura reinante, o pó que paira no ar parado e o
sol implacável dardejando. Não será demais lembrar que o sertão, para nós
sulistas, é a mata cerrada, a floresta inceira, enquanto para o nordestino é
a caatinga, o semiárido, o quase deserto. Alguns trechos exprimem bem essa
sensação: “E assim, descreve o viajante – ao amplexo causticante de um sol
senegalesco, percorrem-se quatro a cinco léguas, e por vezes mais, em
caminhos rasgados no seio inóspito de uma faixa de mato, por picadas
sombrias e desabitadas, onde não se encontra a esperança de uma cacimba,
para matar a sede devoradora, com a esmola de um copo d’água” (p. 19).
Nessas narrativas ele explorou a vivência do sertão. As crendices, as
superstições, o crime e a vingança, as viagens penosas, os rasgos de bondade,
as visagens, os ranchos e as taperas, a doma dos cavalos, a festa de São
João e mil outras facetas do viver sertanejo. O apego do homem do sertão à
sua terra, apesar de tudo, se manifesta pela boca dos personagens. Assim,
Quirino Pereira, morador maltratado pela seca e à beira da miséria, quando
indagado por que não abandona tudo e ruma ao litoral, responde taxativo: “Sei
lá... Coisas de quem é besta... Tenho pra mim que, onde a gente nasce, deve
se enterrar. Aqui no cemitério da vila, estão todos os meus, desde os
troncos velhos. Pra que ir atrás duma cova noutro canto?” (pp. 87/88). E
como o outro não entendia aquela posição, olhou-o por baixo e deixou
transparecer no rosto seu descontentamento. Esse agarramento com o solo
também se encontra no campeiro, é um traço comum aos dois.
O livro é uma agradável surpresa para quem desconhecia seu autor e uma
leitura instigante para os apreciadores da história curta. Foi organizado
pelo escritor Thiago Gonzaga, autor também de excelente ensaio introdutório.
Afonso Ligório Bezerra nasceu em Carapebas, hoje a cidade que adotou seu
nome (Afonso Bezerra), e faleceu em Natal (RN). Ingressou na Faculdade de
Direito do Recife mas não chegou a concluir o curso em virtude da moléstia
que o vitimou. Escritor e jornalista, viu muitas de suas produções
publicadas em destacados órgãos da imprensa do seu Estado e do País.
Católico convicto, sua religiosidade transparece em vários de seus textos.
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(*) “No rancho dos
Bentinhos e outros contos”, de Afonso Bezerra,
organizado em edição póstuma por Thiago Gonzaga, publicado por
Sebo Vermelho Edições,
Avenida Rio Branco, 705, NATAL, RN.
(01 de novembro, 2014)
CooJornal nº 913
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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