Enéas Athanázio
REGISTRO FIEL DE UMA AMIZADE
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À primeira vista, a amizade entre Carlos Drummond de Andrade e Fernando Jorge
parece algo estranha. Dois temperamentos tão diferentes tornariam difícil uma
aproximação entre o poeta tímido e lacônico, avesso às grandes efusões, e o
jornalista de combate, sempre disposto ao debate e à polêmica. Mas, ainda que
provocando surpresa, a verdade é que vigorou entre eles uma amizade íntima que
perdurou durante longos anos. Ambos tinham em comum o amor pelas letras e eram
homens de grande erudição, conhecedores da literatura e do meio cultural. E
então, no curioso livro “Drummond e o elefante Geraldão” (Editora Novo Século –
S. Paulo – 2012), Fernando Jorge fez o registro saudoso e sentimental dessa
longa amizade num texto delicioso, escrito com a costumeira elegância de um
estilista.
Tantos e tão interessantes são os relatos contidos no livro que não é fácil
escolher algumas amostras para o eventual leitor. Começando pelo título, o autor
explica que se deve ao desejo, nunca realizado, de Drummond escrever um romance
fantástico contendo a história de um elefante de apetite insaciável, que
devorava todos os dias um boi, uma baleia ou um hipopótamo. Em consequência,
cresce tanto que fica do tamanho do morro Itacolomi, impedindo-o de namorar a
elefanta Claudete. E o mais grave: quando fazia suas necessidades, emporcalhava
tudo! E talvez por isso, o infeliz elefante Geraldão jamais apareceu como
personagem de romance, embora muito divertisse o poeta ao imaginar suas
aventuras. Fernando Jorge nunca esqueceu a gargalhada de Drummond, atitude das
mais raras em homem tão discreto, ao narrar as peripécias do elefante. “Ele me
transmitiu a impressão, ao narrar a história do tal elefante, de ter voltado à
sua infância na longínqua Itabira de 1910” (p. 12).
Episódio chocante, acontecido com o poeta, relata o encontro de rua com um
lunático desbocado e agressivo que já havia extorquido dinheiro de Jorge Medauar,
ameaçando-o com uma faca. Fernando Jorge e Jorge Medauar conversavam quando
deles se aproximou o tal indivíduo, momento em que surge Drummond e se junta ao
grupo. Ao saber que se tratava do poeta, o sujeito a ele se dirige: “Cara –
rosnou o desvairado – tu é muito feio, tu parece um aborto, uma assombração.
Como tu é feio, cara!” Os outros ficaram horrorizados mas ele prosseguiu,
insistindo em acentuar a feiúra do poeta, e depois afirmou: “Ouça, não fique com
inveja, eu, como poeta, sou mil vezes superior a você, porque escrevi o poema
“Linda prostituta sifilítica, tu és a minha paixão!” Estarrecido diante da
brutalidade o grupo se desfez. Fernando e Medauar, à noite, visitaram o poeta em
solidariedade. E a história termina assim: “Decorridos três meses, após
esbofetear um padre negro, em quem enxergou a materialização do Belzebu, o
monstro foi internado num manicômio, onde, segundo me informaram, vivia a
declamar o seu poema “Linda prostituta sifilítica, tu és a minha paixão” (pp.
18/21).
No decorrer de longas palestras, nos seus seguidos encontros, Fernando Jorge vai
anotando o que acontece, prevendo, sem dúvida, a importância do material
coletado. Registra as opiniões do poeta sobre autores e livros, suas recordações
da infância, desabafos, confissões, episódios marcantes. Chega a pedir ao
jornalista que o critique de forma negativa através da imprensa. “Só recebo
elogios, como poeta, - explicou ele – e isto é muito perigoso. Elogios
intermináveis transformam o elogiado, se está vivo, num medalhão, numa figura
acadêmica de museu histórico” (p. 34). Fernando Jorge atendeu ao pedido do
amigo, ele se divertiu muito com a cacetada recebida e a crítica foi um sucesso.
Num dos capítulos é evocada a curiosa história do “poema da pedra”, um dos mais
conhecidos de Drummond, e que provocou intensa polêmica. Para encerrar,
transcrevo-o aqui: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio
do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra. – Nunca me
esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas./ Nunca
me esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio
do caminho/ no meio do caminho tinha uma pedra.” (p. 106).
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Contato com o Autor comentado: Rua Professor Arthur Torres Filho, 177
Alto da Boa Vista – 04742-030 – SÃO PAULO – SP.
(01 de setembro, 2014)
CooJornal nº 905
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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