Enéas Athanázio
A RAINHA DO SERTÃO
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Enviou-me o renomado poeta cearense Valdemar Alves um exemplar de excelente
revista editada em Fortaleza (*). Nela, como matéria de capa, foi publicada
completa reportagem a respeito do centenário de uma das mais curiosas figuras do
cangaço – Maria Bonita (1911/1938).
Maria Gomes de Oliveira, também conhecida como Maria de Déa, foi a primeira
mulher a integrar um bando cangaceiro, revelando sempre extraordinária coragem.
Tendo conhecido Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, numa visita por ele
feita à casa paterna, apaixonou-se pelo chamado rei do cangaço e, contrariando
as opiniões gerais, decidiu acompanhá-lo naquele mundo de crueldade e violência.
Não hesitou em abandonar o marido, o sapateiro José Miguel da Silva, por apelido
Zé de Neném, figura controversa, que seria um acomodado, para uns, ou um
farrista inveterado, para outros, e com quem Maria vivia às turras. Nessa época
Lampião se encontrava no auge da fama e do poder, admirado pelo povaréu como o
governador do sertão. Seu renome de justiceiro que tirava dos ricos para dar aos
pobres e enfrentava incólume as volantes policiais incendiava os corações das
moças e o mesmo aconteceu com Maria de Déa. Tão logo ela fugiu com Lampião, sua
família começou a ser perseguida pela polícia, até que ele enviou um recado em
que prometia vingar-se de quem importunasse os velhos. Como por encanto, as
perseguições cessaram.
Tão logo ingressou no bando, Maria adotou a postura de rainha. Tratada com
rapapés e salamaleques, respeitada por todos, inclusive pela força do medo, não
tardou a ser chamada de Maria Bonita, embora não fosse tão bela quanto se
propagava. Depoimentos de contemporâneos a descreviam como uma cabocla comum,
sem maiores dotes físicos. Sua decantada beleza era exagerada pelos admiradores.
Mas a verdade é que possuía brilho próprio, vestia-se com esmero e posava com
elegância para as fotos do sírio Benjamin Abrahão, o primeiro a viver algum
tempo entre o bando, filmando e fotografando seu cotidiano. São bem conhecidas
as fotos onde aparece no rigor do traje cangaceiro, sentada em meio à paisagem
do semiárido, numa delas acariciando seus cães. Por ela Lampião votava
verdadeira adoração, até mesmo ouvindo seus pedidos em momentos cruciais, e
compondo canções em sua homenagem, a exemplo daquela que começa assim: “Acorda
Maria Bonita,/ Acorda vai fazer café./ Que o dia já vem raiando/ E a polícia já
está de pé.”
Segundo a cangaceira Sila, Maria Bonita foi uma pessoa distante, violenta, e
brigava sempre com as outras. O pesquisador Oleone Coelho Fontes, por sua vez,
afirma que “Maria Bonita se impôs. A postura é de dama, de primeira dama. Ar de
rainha.” E o escritor Alcino Alves da Costa conclui: “Maria Bonita foi amorosa e
fiel, dedicada e compreensiva. A filha de Dona Déa foi uma mulher fiel e
carinhosa.” De sua ligação com Lampião nasceram Ananias, conhecido como Portão,
e Expedita. O primeiro foi criado pela avó materna, por ela registrado como
filho. Em Juazeiro do Norte surgiu João Ferreira da Silva, que se dizia filho do
casal. Ela teria perdido pelos menos dois outros filhos, o que se deveu às
agruras da vida errante. O ingresso de Maria Bonita no cangaço abriu caminho
para inúmeras outras mulheres, destacando-se Dadá, mulher de Corisco, o Diabo
Loiro, pela valentia e pela beleza, e Durvinha, companheira de Virgínio, de
acentuada beleza. Exímia atiradora e valente, Maria Bonita enfrentou situações
críticas ao lado de Lampião, inclusive no longo período em que o sertão estava
coalhado de volantes policiais de vários Estados e que o perseguiam sem trégua.
Chegou a ser baleada, em 1935, num combate na vila Serrinha do Catimbaú, de onde
Lampião comandou uma retirada estratégica que salvou a vida da mulher.
Mas estava escrito que o cangaço teria que acabar. Era um banditismo organizado
que envergonhava o país e o presidente Vargas pressionava os governadores a
combaterem para valer os bandos cangaceiros. Em consequência, o sertão
fervilhava de volantes que buscavam exterminar esses bandos, em especial o de
Lampião. E foi assim que ele e seu grupo foram cercados na Grota do Angico, em
Sergipe, pelas forças do tenente João Bezerra. No alvorecer de um dia nebuloso,
foram acordados com uma saraivada cerrada de tiros. Morreram vários cangaceiros,
entre os quais o próprio Lampião, e também Maria Bonita, alvejada pelo soldado
José Panta de Godoy. Vários deles foram decapitados e suas cabeças exibidas em
praça pública, como troféus, e depois expostas no Instituto Nina Rodrigues, em
Salvador, onde permaneceram por muitos anos e ainda pude vê-las. Corre a versão
de que Maria Bonita foi decapitada viva.
Apesar dos esforços de Corisco para manter o cangaço em ação, a morte de
Lampião, em 1938, é tida como o termo final do fenômeno. Corisco ainda
sobreviveu por dois anos nas mais difíceis condições. A morte do rei e sua
mulher é atribuída em geral a um descuido dele e à delação. Seja como for, o
casal pereceu na mesma ocasião e Maria ainda tentava socorrer Lampião, já ferido
de maneira letal.
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(*) Revista “Nordeste VinteUm” – Fortaleza (CE), número 18, pp. 6/14.
(10 de agosto, 2014)
CooJornal nº 903
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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