10/07/2014
Ano 18 - Número 899
ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio
CALMON: A INVASÃO
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Acontece neste ano o centenário de um fato histórico pouco divulgado em nosso
Estado, talvez porque envolto numa série de outros eventos. Refiro-me à invasão
da então vila de Calmon, hoje município do mesmo nome, no ano de 1914, portanto
em plena Guerra do Contestado (1912/1916).
O pequeno povoado modorrava numa tarde ensolarada, 5 de setembro, e o dia se
escoava como outro qualquer. Ouvia-se o canto estridente do bentevi e o trinado
de outros pássaros em meio ao arvoredo folhudo, ainda muito próximo do centro. E
o silêncio era violado pelo ruído cadenciado do maquinário da serraria da
Companhia Lumber (Sothern Brazil Lumber & Colonization Company), um dos braços
do chamado Sindicato Farquhar, instalada na baixada diante da estação
ferroviária, do outro lado dos trilhos.
É então que surge na estrada do oeste, na verdade uma simples picada em meio à
floresta, um cavaleiro solitário correndo a galope no rumo da vila. Olhos
esbugalhados, cabelos eriçados, é o retrato do pavor. Entrando na vila, estaca
diante do armazém de Nicola Codagnone a montaria suada cujas virilhas espumam
(*). Apeia rápido, entra no armazém onde várias pessoas se encontram, e grita:
- Pessoal! Os fanáticos estão chegando e já mataram muita gente. Onde estão os
pistoleiros da Lumber?
Há uma correria. Tratam de avisar os operários da serraria, tentam convocar a
guarda da Companhia e alertam o telegrafista da estrada de ferro, Antônio.
Debruçado sobre o Morse, ele envia um pedido se socorro ao quartel de Timbó
Grande, onde se encontra o capitão Matos Costa: “Socorro! Bandidos em Calmon. A
vila está sitiada.” As estações recebem e retransmitem o apelo desesperado. Mas
é tarde.
Nesse meio tempo uma multidão aponta na mesma estrada do oeste. São cerca de
trezentas pessoas, homens e mulheres maltrapilhos, eles com as cabeças raspadas
(os “pelados”), elas com longos cabelos soltos. Todos portam uma fita branca e
estão armados com velhas espingardas picapau (de carregar pela boca), algumas
pistolas enferrujadas, facões e ferramentas de trabalho, além de armas
improvisadas, feitas de madeira. Caminham decididos pela rua principal aos
gritos de viva São João Maria e aos Doze Pares de França que reboam na morraria
próxima. São liderados por um jovem entre os 16 e 17 anos, de nome Francisco
Alonso, conhecido como Chiquinho. Era loiro e sua figura é deveras controversa.
Segundo alguns, foi violento desde cedo; para outros sempre se mostrou
ponderado. Não obstante, votava ódio mortal aos gringos, aí se incluindo os
funcionários grados, mesmo brasileiros. Diante da multidão, ele gritava:
- Morte aos gringos! Poupem as mulheres e crianças!
E o povaréu rugia:
- Roubaram nossas terras! Mataram nossos filhos! Agora queremos vingança!
Assim decididos, iniciaram o ataque. Invadiram e incendiaram a estação
ferroviária, onde mataram o telegrafista Antônio, atearam fogo às casas e
rumaram para a serraria, símbolo do poder estrangeiro. A guarda tentou defender
as instalações mas foi contida e os pistoleiros mortos. E tudo foi incendiado
numa fogueira monumental. O “colosso” – como era tratada a serraria – ardeu com
seus galpões, pilhas de madeira serrada, estoque de toras que estavam no pátio e
tudo mais. Segundo testemunhos da época, o fogaréu perdurou por dias e noites,
alumiando o sertão em derredor com suas chamas fantasmagóricas. Muitas casas
foram arrombadas e destruídas e parte da população conseguiu fugir deixando para
trás tudo que possuía. Muitas pessoas foram degoladas.
Consumada a invasão, os revoltosos se retiram para seu reduto. Levam provas do
ataque, como armas, alimentos e joias pertencentes aos americanos. Chiquinho
Alonso prega numa parede um recado onde justifica sua atuação como resposta à
invasão de suas terras pelos estrangeiros, ato que atribui à República. Em
seguida todos se fartam numa churrascada comemorativa. Segundo consta, Chiquinho
foi morto durante a Guerra do Contestado. Pouco se sabe sobre ele (**).
No dia seguinte, 6 de setembro, chegou a vez de São João dos Pobres, hoje Matos
Costa. Invadida sob a liderança de Venuto Baiano, aqui as ações foram radicais.
Toda a vila foi incendiada, mortos todos os homens válidos, não restou pedra
sobre pedra. O próprio capitão Matos Costa, um pacifista que compreendia as
posições dos revoltosos, foi morto num equívoco lamentável.
As invasões de Calmon e Matos Costa marcaram fundo a população da região e nunca
foram esquecidas. Ficaram como marcas indeléveis na sofrida história de uma
região empobrecida pela guerra e pela prolongada extração de suas riquezas
naturais sem receber qualquer retribuição. Por longos anos viveu no mais
completo abandono. Até a ferrovia, a causadora de tudo, está desativada e
entregue ao abandono.
_______________________________
(*) Sobre esse personagem já escrevi em outra oportunidade (“Curioso capítulo de
nossa história”).
(**) Sobre a reconstituição da invasão, consulte-se o livro “A história de
Calmon na Guerra do Contestado”, de J. B. Ferreira dos Santos, do qual me vali
em parte (Editora da Uniuv – 2009).
(10 de julho/2014)
CooJornal nº 899
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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