25/06/2014
Ano 18 - Número 897
ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio
MINHAS MEMÓRIAS DOS OUTROS SOBRE
O “CONTESTADO”
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A chamada Guerra ou Campanha do “Contestado” aconteceu entre 1912 e 1916, de
modo que só uns trinta e tantos anos depois é que tomei conhecimento dela. Tudo
o que sei a respeito veio dos livros e de informações de outras pessoas, mas é a
estas que desejo me ater neste comentário, para que não fique uma coisa livresca
como tantas.
Por circunstâncias da vida, nasci e cresci em localidades ligadas, por algum
motivo, a esse movimento, e assim ouvi referências a ele muito cedo. Observo
desde logo, porém, que o povo o designava por “Revolta dos Jagunços” e jamais
por “Contestado”, nome que lhe atribuíram os historiadores e que não foi feliz,
uma vez que parece indicar uma guerra entre Santa Catarina e Paraná, como muita
gente imagina e até já encontrei em apostilas colegiais. Na verdade, a questão
de limites entre os dois Estados, coincidente com a guerra e uma de suas causas,
nunca passou dos Tribunais e abrangia área menor que aquela onde se desenrolou a
luta.
Por muitos anos meu padrasto foi funcionário da célebre Companhia Lumber (Southern
Brazil Lumber & Colonization Company), pertencente antes ao grupo de Percival
Farquhar e já “incorporada” ao patrimônio nacional, apontada como uma das
causadoras da revolta, e contra a qual se voltava o ódio surdo do povo, mesmo
depois de tantos anos. Ele prestava seus serviços na vila de Calmon, hoje
município, situada às margens da Rede Viação Paraná - Santa Catarina (RVPSC),
cerca de sessenta quilômetros ao sul de Porto União. Ali a Companhia mantinha
uma de suas sedes em Santa Catarina, ficando a outra em Três Barras, na época
distrito de Canoinhas, ambas administradas pela direção geral, no Rio de
Janeiro. Nessa época a sede de Calmon pouco ou nada realizava, limitando-se a
conservar o imenso patrimônio em terras, pinheiros (araucárias) e madeiras de
lei. Na área da colonização, limitou-se a vender alguns terrenos, e mesmo assim
de forma algo suspeita, tanto que um dos administradores acabou demitido por
esse motivo. O reflorestamento, pelo que me lembro, nunca foi levado a sério e a
própria serraria só funcionou de forma permanente nos últimos tempos, quando a
empresa estava prestes a mudar de mãos. Foram administradores do setor de
Calmon, nesse período, o carioca Murilo Mavignier Colin e o americano Ernesto
Bishopp.
Este último era uma figura folclórica. Solteirão, vivia só num imenso casarão um
tanto afastado da vila e consumia seus dias dormindo, lendo Érico Veríssimo e
tomando cervejas. Dizia-se que consumia 45 garrafas numa noite, o que talvez
fosse exagero, mas o fato é que todas as lembranças dele retratam-no ao lado de
algum balcão, com as bochechas arroxeadas e uma descomunal barriga.
Calmon, segundo consta, deve seu nome ao ministro da Viação Miguel Calmon Du Pin
e Almeida, engenheiro que exerceu esse cargo muito jovem e que fora colega do
escritor Lima Barreto, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Por ele o
escritor tinha incoercível aversão, destinando-lhe as maiores ofensas durante
suas bebedeiras e até ameaçando-o das formas mais ridículas, como a de comprar
uma espada para matá-lo. Não satisfeito, pintou-o de maneira negativa nos seus
escritos, em especial no conhecido panfleto “O Ideal de Bel-Ami”, hoje recolhido
às suas Obras Completas, e no qual comparava o antigo colega ao célebre
personagem de Maupassant.
Pois bem. Em função do emprego de meu padrasto, muitas férias do Colégio passei
em Calmon, ouvindo as histórias dos jagunços e conhecendo lugares relacionados a
episódios da guerra.
Conheci o local onde se situava a serraria da Lumber, a antiga. Um chapadão
descampado, à direita da ferrovia, onde funcionava a imensa indústria, uma das
mais modernas daquele tempo, creio mesmo que só superada pela de Três Barras, e
que devorou florestas incontáveis, desmatando sem piedade e com grande
desperdício a região. Tornou-se conhecida como “o colosso” e era assim designada
pelo povo. Toda ela, incluindo enormes estoques de madeira serrada, toras e
dormentes, foi queimada pelos jagunços, com o fogo que a devorou ardendo por
dias e noites, as labaredas iluminando a vila cercada de morros e o sertão em
derredor. Segundo os comentários que ouvi em criança, o espetáculo promovido
pela fogueira descomunal foi impressionante e dele as pessoas que o
testemunharam jamais esqueceriam. Ainda pude ver peças de máquinas da indústria,
importadas, calcinadas pelo fogo e que resistiam à intempérie a que estavam
relegadas.
Nas proximidades, com águas viscosas e escuras, abria-se grande poço onde o povo
comentava terem sido encontradas ossadas de pessoas decapitadas nas terríveis
degolas a facão. Nesses meus dias de criança o poço ali permanecia, cercado por
um tapume, como testemunha muda de dias trágicos. Chamavam-no de “Poço dos
Jagunços” e creio que foi atulhado.
As principais casas da vila também foram incendiadas, inclusive a residência dos
pais de meu padrasto, forçados a fugir com a família para abrigar-se em Porto
União, cidade que chegou a correr sério risco de invasão pelos fanáticos e cuja
ocupação constava de seus planos. No mesmo local dessa casa, numa esquina
próxima ao pátio da estação ferroviária, foi erguida outra – a Casa Verde – onde
funcionaram por muitos anos os escritórios da Companhia e residiu o
administrador Murilo Colin.
Conheci também, em Matos Costa, o local onde o capitão Matos Costa teria sido
morto a golpes de facão pelos jagunços, à margem dos trilhos e perto da antiga
estação. Ficava cerca de três quilômetros ao norte, mais ou menos no ponto em
que a estrada velha cruzava sobre os trilhos, segundo os mais antigos moradores.
O valente capitão Matos Costa comandava os soldados com os quais acabava de
chegar e havia desembarcado, marchando ao lado da composição, quando o trem que
os conduzira foi atacado de surpresa por grande número de jagunços. Desnorteados
pelo ataque repentino, na escuridão da noite, refugiaram-se em baixo dos vagões
e tentaram resistir. Sem saber como agir, o maquinista apavorado teria posto o
trem em marcha-a-ré, esmagando e ferindo muitos soldados. Foi uma carnificina,
não apenas por isso, mas também pelo ataque violento e inesperado.
Existe também a versão de que o trem, desgovernado, recuou sozinho e ganhou
velocidade, o que me parece pouco verossímil porque não existe descida forte no
local e os lerdos trens de então não se embalavam com tal facilidade. O prof.
Estevão Juk, conhecedor do assunto, inclinava-se pela primeira hipótese.
Por essa razão, homenageando aquele militar, a antiga São João dos Pobres passou
a se chamar Matos Costa. Nas cercanias dessa cidade conheci lugares onde
aconteceram violentos combates. A vila de então foi totalmente destruída pelo
fogo e muita gente assassinada.
Esse recanto do Estado ficou empobrecido pela guerra e pela devastação. A
multinacional e suas sucessoras sugaram tudo que puderam e nada deixaram em
troca. Nem uma estrada, um hospital, uma escola, um clube, uma instituição
qualquer que servisse àquele povo cuja força de trabalho exploraram por tantos
anos. Como diziam as pessoas de lá, só deixaram montes de serragem e... aleijados
de serraria.
Em Campos Novos, minha cidade natal, corriam muitas histórias sobre o
“Contestado”, acontecidas por lá, em Curitibanos e outros locais da região.
Lembravam-se muito as proezas dos Doze Pares de França e do temível Adeodato,
também mencionado como Leodato, mas tudo um tanto vago e difuso, dando a
impressão de que aquela revolta se confundia na consciência coletiva com tantas
outras que por ali passaram. Dizia-se que o monge “São” João Maria, maltratado
por algumas pessoas, teria praguejado minha terra, desejando que se
transformasse num grande “purungal”. Felizmente, porém a suposta praga não
pegou.
Para os lados do Fundo Grande, onde meu avô tinha fazenda, erguia-se numa
encruzilhada dos campos uma capela votiva ao referido monge. Sobre seu altar,
sempre florido e recoberto de brilhantes toalhas de crochê engomado, feitas
pelas mulheres da redondeza, ardiam grandes velas. Foi nela que vi pela primeira
vez a foto do monge, sentado, com as pernas cruzadas, calçando sandálias e tendo
na cabeça o gorro de couro de jaguatirica que se tornou sua marca. Naquele
local, segundo o povo, ele pernoitou, orou e pregou. As águas de um córrego
campeiro próximo à capela teriam poderes curativos.
Em Campos Novos, por volta de 1910, teria aparecido pela primeira vez em Santa
Catarina o monge José Maria – o monge guerreiro – originário do Paraná. Ou, pelo
menos, foi então notada sua presença.
Dois sentimentos populares me pareceram constantes em relação à sangrenta
“Guerra do Novo Mundo.” Na região de Calmon e Matos Costa, o rancor generalizado
contra a Lumber e os “americanos”, aí se incluindo administradores e
funcionários graduados, entre eles os que vinham de Três Barras e do Rio de
Janeiro. Em todos os lugares, de um modo geral, era perceptível o misto de medo
e admiração por Adeodato e suas atrocidades, cujo nome “fazia criança dormir.”
Resta escrever sobre os livros e ensaios inspirados pelo “Contestado”, que são
numerosos, na história, na ficção e na poesia, mas isso é matéria para, quem
sabe, outra ocasião.
Como neste ano acontece o centenário da invasão e incêndio do povoado de Calmon
pelos revoltos, a 5 de setembro de 1914, creio que estas lembranças da
pré-história de minha vida podem interessar aos leitores que apreciam o assunto.
Faço ainda uma observação. Tenho lido em vários lugares referências aos
“turmeiros” como se fossem os trabalhadores braçais da estrada de ferro. É um
equívoco. Turmeiros eram os “conservas” da ferrovia, que residiam em pequenas
vilas situadas entre as estações e percorriam o trecho em vagonetes para a
manutenção. Os trabalhadores braçais eram conhecidos como “arigós” e ainda
conheci alguns deles.
(25 de junho/2014)
CooJornal nº 897
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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