Nestes longos anos de literatice, jamais me passou pela cabeça a hipótese de
virar personagem de romance. Se é verdade que qualquer pessoa, ainda que à
revelia ou sem saber, corre o riso de se transformar em modelo para um
personagem, também se sabe que um personagem nunca é uma só pessoa, reunindo, em
geral, características de várias outras, observadas pelo autor, e que também
refletem muito dele próprio. No caso a que me refiro, porém, eu apareço nas
páginas do romance identificado pelo nome próprio, profissão e tudo o mais. E
junto comigo, em igualdade de condições, entram em cena o escritor e historiador
gaúcho Nelson Hoffmann e o poeta e escritor luso-brasileiro Silvério da Costa,
radicado em Chapecó há longos anos, além de Maurício, advogado cearense
fictício. E todos aparecemos em situações muito especiais.
Isso ocorre nas páginas do romance “O Recomeço – Um itinerário de tempo
cíclico”, de autoria de José Humberto Espínola Pontes de Miranda (Top Produções
Gráficas – Recife – 2013 – 518 págs.). Ali o autor descreve um encontro
imaginário, ainda que baseado em fatos reais, do chamado Manifesto Nheçuano, na
cidade de Roque Gonzáles, no vizinho Rio Grande do Sul. Esse movimento, hoje
consolidado, reúne estudiosos e pesquisadores que buscam promover a revisão
crítica da história missioneira, com destaque para a ação do célebre
cacique-pajé Nheçu, líder dos índios guaranis e de outras tribos na defesa do
território que lhes pertencia ante a invasão do colonizador. Assim, inspirado em
nossos escritos a respeito, o autor imagina o encontro naquela cidade em que
Nelson Hoffmann seria o mediador, eu o expositor, Silvério e Maurício os
debatedores. Ocorre, então, a defesa do cacique, alinhando-se em favor dele os
argumentos de natureza jurídica, moral e filosófica, bem como o exame dos fatos,
como realmente aconteceram, à luz dos mais categorizados autores. Meu livro
“Mundo Índio”, “Terra de Nheçu”, de Nelson Hoffmann e “Rapsódia de Espantos”, de
Silvério da costa, contribuíram para tornar a narrativa convincente.
Mas o romance não se esgota nesse episódio, vai muitíssimo além. Numa tentativa
tosca de resumo, diria que a linha mestra da narrativa trata de um casal, ainda
jovem, mal sucedido no primeiro casamento, que descobre ter renascido e, depois
de muitas lutas, se afasta de tudo para retomar uma existência natural,
sacrificando todas as ilusões até então alimentadas. Renunciam à vida num “mundo
doentio, fadado ao colapso em que quase sempre não nos apercebemos disso.” Para
chegar a tanto, porém, vivem uma riquíssima experiência de vida que o autor
soube pintar com maestria, revelando imenso conhecimento de temas tão distintos
como história universal e brasileira, geografia, filosofia, teologia,
indigenismo e muito mais, além de esbanjar informação atualizada sobre outros
tantos aspectos. É um texto denso e compacto, contendo uma tese em quase toda
página, rico de ideias e informações, num trabalho impressionante de método e
organização da imensa pesquisa realizada. Uma obra ambiciosa que custou ao autor
quatro anos de trabalho árduo e que ele realizou de maneira exemplar. Trata-se,
enfim, de um livro que enriquece a estante dos chamados romances de tese,
escrito com clareza e precisão, e que prende o leitor curioso, por exigente que
seja.
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Contatos com o autor comentado: Rua André Cavalcante, 4 5
Apt. 1601 – Parnamirim – 52060-090 – RECIFE.
(Publicado no jornal “Página 3”, de Balneário Camboriú/SC,
edição de 15 de março
de 2014, pág. 26).
(10 de junho/2014)
CooJornal nº 895
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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