25/04/2014
Ano 18 - Número 889
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
FARQUHAR E LOBATO (3)
Uma parceria improvável
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Em 1942 sobrevém o inesperado. O milionário paulista Olivo Gomes, grande
admirador e entusiasta de Percival Farquhar, em certo dia procura Monteiro
Lobato. Tinha como objetivo convidar o renomado escritor para escrever a
biografia de Farquhar. Surpreso diante da ironia da situação, Lobato parece ter
concordado, pelo menos pela curiosidade de ver até onde iriam as coisas. “Após
quase uma década de intensa rivalidade com Farquhar, Lobato ficou intrigado com
o assunto – diz o autor. – E Farquhar concordou em cooperar com o notável
escritor paulista após ler as sete páginas datilografadas do ensaio “Farquhar e
o Brasil”, escritas por Lobato “ (p. 467). Calculista e frio, o americano deve
ter imaginado a honra de ser biografado por Lobato, não apenas o mais famoso
escritor da época como uma espécie de homem público sem cargas. Como afirmou
Drummond, Lobato era o herói civil da Literatura. Quanto a Lobato, há ter
considerado que, afinal, a luta contra Farquhar era de princípios e nada tinha
de pessoal.
É curioso observar que os biógrafos de Lobato, desde os mais categorizados, como
Edgard Cavalheiro e Alberto Conte, e todos os demais, não fazem qualquer
referência ao assunto. Os volumes de suas Obras Completas, organizados post
mortem e contendo esparsos do escritor também não recolheram esse texto. Em
minhas inumeráveis leituras sobre Lobato, jamais encontrei tais páginas ou
qualquer referência a elas. E, no entanto, segundo o autor, o texto “constava de
uma lista de ensaios inéditos deixada por Lobato” (p. 471, nota 5). Parece fora
de dúvida que o ensaio foi feito, uma vez que o autor o comenta longamente e até
transcreve alguns trechos. Em certa passagem Lobato teria dito que Farquhar era
o “herói econômico”, como, em outra ocasião, havia dito que Henry Ford era o
“herói do trabalho.”
Mas o projeto não foi adiante. Tudo indica que essa seria uma parceria
improvável, se não impossível, porque acredito que se desentenderiam no primeiro
encontro. Além disso, um obstáculo imprevisto entrou em cena. Antes que Lobato
se lançasse ao trabalho, inclusive entrevistando Farquhar, foi procurado pelo
emissário Olivo Gomes. Ele informava ter recebido um recado do Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) de que o governo não via com bons olhos a
iniciativa. Afinal, Lobato estivera trancafiado na prisão no ano anterior e era
considerado adversário e subversivo. No fundo, temiam que ele produzisse uma
obra criticando a burocracia e a inércia nacionais e, mais ainda, que fustigasse
a tendência nazi-fascista do governo durante a primeira fase da II Guerra
Mundial. Eram tempos de ditadura e só restava obedecer.
Percival Farquhar foi homem de mil negócios e fundou um império econômico – o
chamado Sindicato Farquhar, estendendo tentáculos por boa parte do mundo.
Nascido em York, na Pensilvânia, estabeleceu a sede de seu grupo em Nova York.
Formou-se em Engenharia e Direito. Teve negócios em Havana e construiu ferrovias
em Cuba e na Guatemala. Lidou com energia elétrica, bondes, terras, gado,
frigoríficos, navegação, celulose e papel, madeiras e minérios. Foi
concessionário dos portos do Pará e do Rio Grande, construiu a célebre Estrada
de Ferro Madeira-Mamoré, a ferrovia do diabo, em Rondônia, e a Estrada de Ferro
São Paulo-Rio Grande, interligando o sul do país. Sonhava implantar uma rede
ferroviária transcontinental, ligando todo o continente, e realizou em parte
esse propósito. Seu famoso trem internacional, blindado e luxuoso, trafegou
desde a Argentina até São Paulo. Ainda conheci e até viajei nesse trem.
A figura de Farquhar ligou-se para sempre à história de Santa Catarina. Ele
construiu o trecho da ferrovia entre Porto União (SC) e Marcelino Ramos (RS),
cruzando todo o Vale do Rio do Peixe, bem como o ramal até o porto de São
Francisco do Sul e a Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina. Em Três Barras e
Calmon, ambas em SC, montou grandes serrarias operadas pela Southern Brazil
Lumber & Colonization Company, empresa apontada como uma das causadoras da
Guerra do Contestado e cujas instalações, em Calmon, foram invadidas e queimadas
pelos revoltosos. Só nessa região, segundo estimativas, a Lumber, associadas e
sucessoras teriam serrado cerca de um bilhão de árvores, sugando toda sua
riqueza sem deixar nada em troca. Nem uma obra pública, um educandário, um
hospital. Até mesmo a estrada de ferro, causadora de tudo, está desativada. E a
região amarga a triste condição de ser a mais pobre do Estado.
O autor, Charles Anderson Gauld (1911/1977), formado em História, foi jornalista
e professor, tornando-se mais tarde um brasilianista. Segundo a tradutora, a
biografia foi o trabalho de uma vida. E, de fato, a bibliografia utilizada é
impressionante (*).
_________________________
(*) “Farquhar, o último titã”, Charles A. Gauld, tradução
de Eliana Nogueira do Vale, S. Paulo, Editora de Cultura,
2006, 520 págs.
(25 de
abril/2014)
CooJornal nº 889
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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