A edição brasileira da monumental biografia de Percival Farquhar (1864/1953)
traz um capítulo extra que é uma curiosidade e bem merece um comentário (*).
Nesse breve capítulo, que é um autêntico ensaio, é abordada a posição de ambos
em relação aos problemas do país naquela época e a opinião que cada um fazia do
outro, ainda que nunca tivessem se encontrado em pessoa. Para Monteiro Lobato,
patriota e nacionalista, Farquhar não passava de um perigoso aventureiro
internacional que pregava o entreguismo e encarnava o próprio imperialismo. O
escritor temia a ação do americano, em especial sua capacidade de abrir portas
de maneira não ortodoxa, através de polpudas propinas que, segundo seu biógrafo,
eram repassadas por seus advogados e engenheiros bem relacionados, nunca por ele
próprio, que seria quacre convicto. Farquhar, por outro lado, encarava as
campanhas de Lobato pelo ferro e pelo petróleo com ceticismo e ironia, vendo-as
como uma espécie de combate a moinhos de vento por um homem que vivia no mundo
da lua e que, por sinal, é o título de um dos livros de Lobato. O tempo
mostraria que Lobato estava certo, tanto com a descoberta do primeiro poço de
petróleo na Bahia, por coincidência num lugar denominado Lobato, e pelo inegável
sucesso da usina de Volta Redonda.
Como se sabe, Lobato costumava escrever ao ditador, no auge de seu poder,
tratando-o simplesmente por “Dr. Getúlio” e logo dizendo sem censura tudo que
pensava. E assim foi por bastante tempo, até que uma dessas cartas o colocou
atrás das grades. É provável que “Dr. Getúlio” considerasse que o escritor havia
passado do limite tolerável e remeteu uma de suas missivas ao famigerado
Tribunal de Segurança Nacional, dando margem ao processo que o levou à cadeia.
Esse foi, sem dúvida, um dos gestos mais infelizes de Vargas, manchando de
maneira permanente sua biografia. Quanto a Farquhuar, no entanto, e bem antes
disso, Lobato escreveu a Getúlio alertando-o sobre as intenções nebulosas do
americano.
Tomando conhecimento de que Farquhar tinha audiência marcada com o presidente,
Lobato se apressa em escrever-lhe para colocar as coisas em pratos limpos.
“Lobato advertia Vargas – escreve o autor – de que Farquhar era o “sinistro”
imperialista representante da Bethlehem e da U. S. Steel, que vinha com a
finalidade de destruir o plano Lobato-Bulcão, destinado a resolver todos os
problemas do Brasil” (p. 465). É que Lobato vinha empenhando hercúleos esforços
na implantação de uma pequena usina siderúrgica, em São Paulo, em sociedade com
o industrial Fortunato Bulcão e o engenheiro de minas Antônio Augusto de Barros
Penteado. O escritor e seus sócios advogavam a adoção do chamado Processo Smith,
criado pelo Prof. William H. Smith, de Detroit, que Lobato conhecera na época em
que atuou como adido comercial nos Estados Unidos. Eles o consideravam ideal
para produzir ferro-gusa no Brasil, uma vez que não tínhamos carvão de elevada
qualidade e o novo processo permitiria o uso de babaçu e café imprestável para o
consumo como combustível. Tratava-se de um processo revolucionário que não
exigia altas temperaturas.
Lobato estranhava que Farquhar viajasse ao Rio de avião, numa pressa inusitada,
quando o normal seria optar pelo conforto e a segurança de um grande navio. Por
que agia assim esse homem já idoso? “Para ganhar tempo – respondia Lobato. –
Para organizar a resistência e impedir que seu governo repita a obstrução feita
por Bernardes a Itabira. Por trás de Farquhar estão todos os grupos estrangeiros
interessados em manter o Brasil como colônia em termos de metalurgia.” (pp.
465/466).
Concluiu a histórica missiva apelando a Vargas, “como guardião dos verdadeiros
interesses do Brasil”, para se precaver contra o americano, enviando documentos,
relatórios, artigos e material variado para bem esclarecer a magna questão.
Vargas, no entanto, não parece ter dado maior atenção à advertência. Fosse
porque já tinha posição firmada sobre o assunto ou porque a carta se desviasse
nos escaninhos burocráticos, não deu resposta. A questão metalúrgica no país
ainda rolaria por vários anos, em marchas e contramarchas, até que lhe fosse
imprimido um rumo. Nem Farquhar e nem Lobato foram vitoriosos. Aquele sofreu
vários e penosos reveses; Lobato viu o decantado Processo Smith ser considerado
ineficaz e, por isso, abandonado. Mas nessa altura ele já estava apaixonado por
outra causa – a do petróleo.
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(*) “Farquhar, o último titã”, de Charles H. Gauld, tradução de
Eliana Nogueira do Vale, S. Paulo, Editora da Cultura,
2006, 520 págs.
(25 de
março/2014)
CooJornal nº 885
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
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