10/03/2014
Ano 17 - Número 883
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
POUCO TRATO E MUITO CARRAPATO
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Pelo menos duas vezes por mês, durante o inverno, eles apareciam. Dois meninões morenos e magros, vestidos de maneira bem modesta, embora assumindo
ares de homens de negócios, traziam lenha picada - muito bem picada e de boa
qualidade para o fogão de lenha que permanecia aceso ao longo do dia e
boa parte da noite para esquentar a casa de madeira onde morávamos. A carga,
empilhada e ajeitada no capricho, chegava numa pequena carroça com as laterais
pintadas de verde claro e tirada por um único cavalo, atrelado aos dois varais.
Na boleia, muito teso, postava-se um dos moços, aquele que me parecia o mais
velho, enquanto o outro se acomodava sobre a própria carga. O único problema dos
rapazes estava numa pequena rampa que começava na rua e terminava no pátio de minha casa, coisa de poucos metros,
embora um tanto empinada. Notei, desde a primeira entrega, que o cavalo se
esforçava para subir e só conseguia vencer o morrinho com a ajuda deles,
empurrando a carrocinha para um ajutório.
Foi essa cena incomum que desviou minha atenção para o cavalo. Vencida a
subidinha, ele ficava arfando forte e dando a visível impressão de cansaço, as
ventas aspirando com avidez um ar que parecia escasso.
Observando melhor, como permitia o complicado arreame, verifiquei que se tratava
de um cavalo velho, muito velho, desses de idade imemorial e que já haviam
prestado incontáveis serviços e bem mereceria a aposentadoria em algum potreiro
de capim farto e macio. Tinha a pelagem que lembrava o tordilho de outrora,
embora a mescla de pelos grisalhos deixasse fundadas dúvidas, ainda mais que
estava pipocado de carrapatos espalhados em pequenas elevações por todo o corpo.
Para completar, a extrema magreza deixava à mostra ossos pontudos e o espinhaço
formasse um agudo facão. O pobre matungo fazia pena!
Numa dessas entregas, depois de acertar com os meninos, observei que o cavalo
estava necessitado de banho com carrapaticida e, acima de tudo, de trato, caso
contrário não suportaria o mês de agosto que se avizinhava, proclamado como
matador de velhos - animais ou humanos. Sem conter certa irritação, o mais velho
respondeu num jeito um tanto áspero:
"Ele cóme! Cóme multo bem!"
Sem alimentar a discussão, silenciei e entrei em casa, levando comigo grande
pena do sofrido matungo, enquanto eles manobravam a carroça para retornarem ao
destino.
Numa tarde cinzenta e fria, voltando da rua, avistei de longe a traseira da
carrocinha se esforçando para subir ao pátio de minha casa, empurrada por um
dos meninos. La chegando, encontrei os dois irmãos empenhados em estacionar em
local apropriado para a descarga da lenha picada, como em vezes anteriores. Um
detalhe, porém, me provocou um choque e nunca mais o esqueci: no lugar do
cavalo, entre os dois varões, com as mãos agarradas neles, estava o irmão mais
velho, substituindo o velho animal. Adivinhei de pronto que o matungo havia
morrido e não havendo recursos para adquirir outro, só restou ao rapaz a
alternativa de substituir em pessoa o animal falecido. Ainda que sem arreame,
assumiu, conformado, a condição de animal de tração.
Penalizado, eu me propus a colaborar na compra de outro cavalo, mas o moço,
sempre naquele tom meio ríspido, recusou a ajuda e só aceitou o pagamento do
serviço prestado. Fiquei observando a lenta marcha da carrocinha, depois da
descarga, puxada por um e empurrada pelo outro, vencendo com dificuldade as
pedras e buracos da rua. Nunca mais voltaram e por mais que procurasse não
obtive notícias deles.
Do livro "A liberdade fica longe"
Editora Minarete, Balneário Camboriú, 2007
(10 de
março/2014)
CooJornal nº 883
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados
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