Enéas Athanázio
O JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO, AINDA
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Entre as muitas figuras que povoam Juazeiro do Norte e o Cariri Cearense
abordadas por Raimundo Araújo no livro “Fragmentos do Passado”, já comentado
nesta coluna, se destaca o padre Antônio Vieira. Não se trata do homônimo
português e grande orador sacro, mas daquele que nasceu em Várzea Alegre e se
projetou como escritor de vasta obra e como realizador, implantando importantes
movimentos de assistência social e batalhando sem temor contra a famigerada
indústria da seca. A par de suas atividades como sacerdote, dedicou-se a
construir e reformar igrejas e capelas, além de edificar um ginásio, vencendo
toda sorte de obstáculos. Sua atividade permanente junto ao povão começou a
incomodar os senhoreantes de plantão. E foi então cassado pelo regime
autoritário, “Fui cassado politicamente. Mas não fui castrado moralmente” -
declarou na época.
Cronista, ensaísta e jornalista, havia publicado inúmeros livros até o ano do
ensaio aqui comentado, creio que 23, o mesmo número dos filhos de seu avô.
Abordou nessas obras os mais variados temas, dentre os quais os ligados ao
sertão, pelo qual nutre “um amor sincero, desinteressado e autêntico.” Mas
tratou também de questões relacionadas à fé, à família, à igreja, à questão
social, à história, ao amor, ao relacionamento entre as pessoas, aos problemas
filosóficos, jurídicos, políticos e econômicos e por aí além. Revelando sempre
seguro domínio do tema abordado e com nítida preocupação pelos pequenos e
injustiçados. Um sacerdote imbuído dos sólidos princípios da doutrina social da
Igreja.
Avulta em sua obra o famoso livro “O Jumento, Nosso Irmão”. Tornou-se conhecido
em todo o país, projetando seu autor de forma admirável, comentado com
intensidade na imprensa e na televisão. Segundo Araújo, foi considerado pela BBC
de Londres o mais completo livro até hoje publicado em todo o mundo a respeito
do simpático animal que tantos serviços tem prestado à humanidade.
Graças ao poeta João Bandeira de Caldas, sou possuidor de um exemplar, publicado
em março de 1964, mês e ano fatídicos de nossa história, pela Livraria Freitas
Bastos. Em 300 páginas de texto denso e elegante, o autor estuda o jumento na
história, na religião, na economia, no folclore e na literatura, sempre baseado
em longa e paciente pesquisa. Dedica a obra ao seu amigo Burro e aos seus amigos
que não são burros. Estuda a presença do jumento no mundo e no Brasil e a
importância que teve como animal de carga e de tração, transportando pessoas e
produtos pelas primitivas picadas e até mesmo puxando bondes nos centros
urbanos. Capítulo dos mais curiosos é aquele em que estudou o fabulário
envolvendo o animal e a pequena antologia correspondente. É incrível a
quantidade de fábulas em que o jumento aparece, assim como as anedotas de que é
personagem. Recorda a dívida impagável do Brasil para com o jumento, elemento
importante em sua expansão econômica e social desde os tempos coloniais. Nas
secas nordestinas é sempre um herói, transportando água em longas jornadas,
permitindo a sobrevivência de numerosas pessoas. Além de muitos outros aspectos,
dedica todo um capítulo ao estudo da personalidade do jumento, imaginando até
mesmo sua “carteira de identidade”. É um livro dos mais curiosos e criativos.
Outra figura lembrada por Raimundo Araújo é Virgolino Ferreira da Silva, o
Lampião. Como registrou a história, Lampião visitou Juazeiro do Norte em 6 de
março de 1926 a convite do Dr. Floro Bartolomeu da Costa, então deputado federal
e braço direito do Padre Cícero. O objetivo do convite foi integrar o cangaceiro
e seu bando na luta contra a Coluna Prestes cuja presença na região tirava o
sono das chamadas classes conservadoras. Lampião foi armado e apetrechado para
tanto, mas, segundo consta, nunca enfrentou a Coluna e nem se preocupou em
fazê-lo. Recebeu na ocasião a patente de capitão, engendrada na hora e sem
qualquer validade. Não obstante, usou o título de capitão pelo restante de sua
vida. Nessa visita Lampião foi filmado pelo libanês Benjamim Abraão e
entrevistado pelos jornalistas Otacílio Macedo e Lauro Cabral. A patente foi
assinada por Pedro Albuquerque Uchoa, inspetor do Ministério da Agricultura. Em
livros sobre o cangaço, li que o cangaceiro ficou furioso ao saber que a patente
não tinha validade. É possível que tenha cogitado invadir Juazeiro para se
vingar da “traição”, mas não se atreveu a tanto. O fato, porém, é que ele,
depois de ser recebido com rapapés e salamaleques, saiu armado até os dentes,
com armas novas e modernas, e muito bem municiado. E jamais pensou em combater
coluna alguma; era valente mas não tolo a ponto de afrontar um grupo numeroso e
com treinamento militar. Lampião morreu na Grota do Angico, em Sergipe, local
que visitei, vítima de traição.
O livro de Raimundo Araújo me permitiu rememorar tantos momentos agradáveis
vividos na cidade do Padre Cícero, o refúgio dos náufragos da vida, como ele
dizia. Sonho em lá voltar, inclusive para saborear um bom caruru regado a
cajuína São Geraldo naquele restaurante do Crato que nunca fecha porque as
portas só têm o vão.
(25 de
fevereiro/2014)
CooJornal nº 881
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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