Enéas Athanázio
O JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO
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Três vezes estive em Juazeiro do Norte, a cidade do Padre Cícero Romão Batista,
o santo do Nordeste. Conheci toda a região. Andei pelo Crato, tão lembrado no
célebre poema “Brasil”, de Ronald de Carvalho; fui a Caririaçu, terra do jurista
Raimundo de Oliveira Borges e de Aldenor Benevides, o Filósofo do Piripau;
visitei Assaré, chão do inigualável Patativa; palmilhei pela Rua do Vídéo, em
Barbalha, na companhia do médico e historiador Napoleão Tavares Neves, e não
esqueci de Santana do Cariri, onde está o museu paleontológico. Também fui a
Caldas, estância hidromineral, onde me banhei na Cascata de Lampião e nas
piscinas naturais. Cruzei a célebre Chapada do Araripe, da qual brotam mais de
trezentas fontes permanentes que fazem do Cariri Cearense um oásis verdejante em
meio ao semi-deserto. Em Juazeiro, ainda que suando em bicas, subi ao horto em
que está a estátua em homenagem ao Padre Cícero, uma das maiores do mundo, e
percorri a cidade em todos seus quadrantes, conhecendo os pontos de interesse.
Em consequência, por lá deixei muitos amigos que não se esquecem de mim, tanto
que sempre me mandam alguns mimos.
Entre as recentes ofertas que de lá vieram, destaco o livro “Fragmentos do
Passado”, de autoria de Raimundo Araújo. Formado em Letras, professor, autor de
18 livros e de intensa colaboração publicada na imprensa, neste volume ele
reuniu contos, crônicas, resenhas, biografias e muitos outros textos variados,
produzidos em diversas fases e registrando inúmeros eventos culturais de que
participou, além de fotos de família e de seus ícones. O conjunto é harmônico e
permite uma visão bastante ampla da vida daquela simpática cidade, o antigo
arraial do Tabuleiro Grande, povoado pobre e inerte que o carisma e a fé de um
religioso pertinaz transformaram no principal centro turístico e comercial da
região. Para ela acorrem multidões de todos os cantos do país para reverenciar o
Padre Cícero e os milagres que lá se verificaram despertaram a curiosidade de
incontáveis pesquisadores, dentre os quais Ralph Della Cava com seu famoso livro
“Milagre em Joaseiro.”
Dentre as figuras retratadas no volume, na impossibilidade de me referir a
todas, permito-me destacar duas. A primeira a merecer um comentário é a beata
Maria de Araújo a quem o autor dedicou um ensaio. Figura central dos chamados
milagres do Cariri, essa mulher humilde e analfabeta dedicou a vida à religião.
Quando recebia a comunhão ministrada pelo Padre Cícero, a hóstia se transformava
em sangue, fato que teria sido presenciado por muitas pessoas e atestado por
profissionais da saúde. Começou, então, o seu calvário. Com a proibição da
hierarquia católica de divulgar o episódio, considerado por muitos uma farsa, a
pobre mulher foi atacada de maneira impiedosa até o fim de seus dias e não
mereceu o respeito humano nem mesmo após a morte. “Abriram o túmulo dela e
verificaram que os restos mortais não se encontravam mais na sepultura onde fora
sepultada, pois violaram-na abruptamente (...) No sepulcro encontraram apenas
restos de panos e madeiras do caixão” – escreveu o autor (p. 68). A partir daí
desenrolou-se a longa e penosa questão religiosa do Juazeiro que culminaria com
a excomunhão do próprio Padre Cícero, num dos capítulos mais deploráveis de
nossa história. Maria de Araújo, no entanto, jamais admitiu a prática de
qualquer tipo de fraude e se manteve impávida na sua versão sobrenatural dos
fatos. Sua memória é hoje venerada como a de uma santa.
Outra figura admirável, vítima de quanta injustiça se possa imaginar, foi José
Lourenço Gomes da Silva, o famoso beato Zé Lourenço. Pacifista e dócil por
natureza, foi um líder nato, notável condutor de homens e hábil organizador
comunitário. Depois de muitas andanças e penosos anos de trabalho,
estabeleceu-se com seu povo no lugar Caldeirão de Santa Cruz, em terras do Padre
Cícero. Ali implantou um reduto próspero e feliz, com lavouras de boa produção,
ordem e paz. Tudo se fazia em benefício comum, cada um dispondo do que
necessitava. Tornou-se o refúgio dos infelizes e dos miseráveis, a tábua de
salvação dos náufragos da vida – como dizia o Padre Cícero. Mas essa organização
e seu modelo vitorioso incomodavam. Tratava-se de um quisto indesejável e
perigoso – gritavam alguns, como Catão exigia a destruição de Cartago. E assim
Caldeirão teve a mesma sorte, foi invadido e destruído a ferro e fogo, seus
moradores escorraçados para engrossar a miséria das periferias. Mas o beato,
reabilitado, repousa hoje no mesmo cemitério do Padre Cícero, ao lado do
Patriarca.
Eis uma pequena amostra do livro, revelador de uma região rica em história,
cultura, lendas, literatura, folclore, música e vida palpitante. É pena que seja
tão pouco conhecida aqui nas bandas sulinas.
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Contatos com o autor comentado: Rua São José, 5 5 8
63010-450 – JUAZEIRO DO NORTE - CE
(10 de
fevereiro/2014)
CooJornal nº 879
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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