Enéas Athanázio
LIVROS, ÍNDIOS E CÃES
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No discurso de abertura da Feira Internacional do
Livro de Frankfurt, realizada no mês de outubro, e na qual o Brasil foi
homenageado, o escritor mineiro Luiz Ruffato desancou nosso país. Começou
dizendo que o Brasil foi fundado sob a égide do genocídio indígena, quando
milhões de habitantes autóctones foram dizimados sem piedade pelos colonizadores
e que os índios remanescentes vivem marginalizados e sob a constante ameaça de
espoliação de suas terras. Continuou afirmando que também a situação do negro é
trágica no país, sua contribuição não é reconhecida, continua marginalizado e
contra ele perdura um preconceito dissimulado mas permanente. E concluiu dizendo
que a má distribuição da riqueza e das oportunidades está transformando nosso
país num dos mais violentos do mundo, com as cadeias superlotadas, ainda
prevalecendo a ideia de que a criminalidade é apenas uma questão policial. Como
é de imaginar, proferido em local público e de grande concentração de pessoas,
num evento em que o mundo cultural voltava os olhos para nós, o discurso caiu
como uma bomba e teve intensa repercussão. Muitos jornais o comentaram e um
deles chegou a dizer que a imagem do Brasil foi seriamente abalada em toda a
Europa. Para completar, o escritor João Ubaldo Ribeiro afirmou que o Brasil é um
país parasitário, aludindo, sem dúvida, à grande quantidade de pessoas que vive
às custas do erário público. Bernardo Carvalho, por sua vez, afirmou que no
Brasil todo mundo é contra a corrupção, embora não altere sua postura, o mesmo
acontecendo com a censura.
Esses pronunciamentos provocaram prontas reações de alguns. Ziraldo, por
exemplo, afirmou que o Brasil não é isso e a escritora Nélida Piñon declarou que
não critica o país fora de suas fronteiras e também não faz restrições a colegas
de ofício. Referia-se, por certo, às ondas de boatos, intrigas e críticas que
pululavam durante o evento. Alegando nepotismo na escolha dos participantes,
Paulo Coelho se recusou a comparecer, afirmando desconhecer os escritores
convidados, muitos dos quais nem eram profissionais. Essa atitude provocou
grande polêmica e discussões intermináveis. Apesar de tudo, no entanto, a Feira
foi um sucesso e os escritores brasileiros puderam mostrar ao mundo, através de
editores, distribuidores, críticos, resenhistas, jornalistas e leitores
presentes aquilo que vêm produzindo.
Por infeliz coincidência, durante a realização da Feira, em Frankfurt, explodia
por aqui a polêmica a respeito das biografias e o assunto também foi objeto de
muitos comentários. A grande maioria das pessoas se mostrava perplexa diante da
atitude de artistas que tanto lutaram contra a censura e que agora se colocam em
posição oposta. Como seria de esperar, quase todas as editoras se retraíram e
sobrestaram a publicação de biografias, temerosas de longas e penosas demandas
judiciais. Até mesmo ensaios de outros gêneros, onde apareçam perfis de
personalidades, estão em perigo. O escritor Domingos Pellegrini desistiu de
publicar um ensaio sobre o poeta paranaense Paulo Leminski em virtude das
objeções da família e está enviando por e-mail aos interessados. Imagino que ele
esteja consciente do risco que corre. Isso tudo representa um grave retrocesso
no meio cultural. Já perdemos vinte anos enquanto durou a censura e agora tudo
indica que ingressaremos em outro período obscuro. Mas, como dizia um amigo,
este país é mesmo muito sortido! Quanto a mim, confesso que raras coisas ainda
conseguem me surpreender.
Mas, voltando aos índios, numa tarde destas, andando pela rua, deparei com um
quadro insólito. Diante de uma loja, esperando pelo dono, estava um “poodle”
branco, agasalhado, limpo e perfumado. Distante uns dois metros, um indiozinho,
ao lado da mãe, angariava esmolas. Enquanto um merecia o melhor tratamento e a
simpatia geral, o outro era objeto de visível desprezo. Detive-me observando e
me entristeci com a sorte do pequeno índio.
Agora corre na Internet o movimento “Beagles unidos jamais serão vencidos!”, em
defesa dos cães usados como cobaias. Mas em toda minha vida não vi movimento
semelhante em prol dos índios, os antigos donos e senhores desta terra.
(15 de
dezembro/2013)
CooJornal nº 870
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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