29/11/2013
Ano 17 - Número 868

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

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Enéas Athanázio



BIOGRAFIAS E BIÓGRAFOS

 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Durante muito tempo a biografia foi considerada um gênero literário menor. Como reconstituição da vida de alguém, ela se baseia em fatos, não dando margem à criatividade e se aproximando mais da história, à qual sempre deu importante contribuição. Com o correr do tempo, as técnicas modernas de pesquisas e a formação de equipes especializadas que fornecem elementos aos biógrafos, o gênero evoluiu e surgiram excelentes biografias de incontáveis personalidades em todo o mundo. Vieram a público biografias minuciosas e completas, desvendando aos olhos dos leitores as atividades de inúmeras figuras, mais ou menos conhecidas, lançando luzes sobre determinados episódios em que se envolveram, corrigindo erros e, não raro, reparando injustiças de que foram vítimas. Personagens biografados, colocados em seu contexto histórico, muitas vezes permitiram compreender de maneira mais correta a época em que viveram e as razões de suas atitudes. Por outro lado, a biografia constitui uma fonte de aprendizado através da experiência alheia. Em consequência, o gênero ganhou nova dimensão e hoje tem leitores aficionados em grande quantidade e em todo o mundo. O Brasil conta com excelentes e talentosos biógrafos, muitos deles consagrados e cujas obras se colocam sempre entre as mais vendidas.

Nos dias atuais, no entanto, o gênero vive um impasse em nosso país. É que o art. 20 do novo Código Civil só permite a publicação de biografias com a concordância do biografado ou de seus herdeiros, ou seja, as chamadas biografias autorizadas. Ora, submeter a biografia à análise prévia do biografado ou de seus herdeiros constitui, na prática, sujeitar a obra a uma censura antecipada, uma vez que não permitirão, como é evidente, a veiculação de fatos que não sejam de seu agrado, ainda que verdadeiros. E assim as tais biografias autorizadas não passarão de retratos parciais e limitados, desfigurando o gênero, cujo compromisso maior é com a verdade. Temerosas da revelação de certos atos, muitas personalidades têm feito coro contra a alteração desse dispositivo infeliz da lei civil, como vem noticiando a imprensa. É compreensível que as pessoas não concordem com a publicação de fatos que as desabonem, mas a interferência não pode chegar ao absurdo de desfigurar a obra. Como biógrafo do mineiro Godofredo Rangel e do catarinense Crispim Mira, eu não poderia ter realizado essas obras se dependesse de autorização, uma vez que nem conhecia os descendentes de ambos. Numa súmula biográfica de um cidadão, que realizei a pedido da família, eu me deparei com as objeções mais ridículas que se possa imaginar.

Nestes últimos anos a discordância de familiares tem provocado a censura de muitas obras e até mesmo a apreensão judicial de edições inteiras com grave prejuízo para as editoras e para os autores, impedindo que seus livros, frutos de anos de pesquisa e trabalho, sejam distribuídos. Alguns desses casos se tornaram bem conhecidos e têm sido comentados pela imprensa. Assim, “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo, “Noel Rosa, uma biografia”, de João Máximo e Carlos Didier, e “Lampião, o mata-sete”, de Pedro de Morais, foram barrados pela Justiça sob a acusação de invadirem a privacidade ou ofenderem a honra dos biografados. Antes desses, muitos outros aconteceram.

O caso mais estranho, porém, e que tenho acompanhado de perto foi o de meu amigo Alaor Barbosa, escritor goiano radicado em Brasília. Depois de anos de estafantes pesquisas e muito estudo, lendo, relendo e treslendo a obra do Autor, visitando os locais onde ele viveu e entrevistando inúmeras pessoas, produziu “Sinfonia Minas Gerais: A vida e a literatura de João Guimarães Rosa”, editada pela LGE. Trata-se de um livro sério, compacto, lastreado em rigorosas fontes e que reconstitui de maneira fiel a existência do romancista do “Grande Sertão: Veredas.” Na cuidadosa leitura que fiz da obra, comentada nesta coluna, nada encontrei que pudesse, mesmo de longe, prejudicar a reputação ou a memória do festejado escritor. Pelo contrário, o livro só o exalta e engrandece. Mesmo assim, por insondáveis desígnios, uma das filhas de Guimarães Rosa ingressou na Justiça e obteve uma liminar determinando a apreensão de toda a edição. E assim decorreram cinco anos de uma renhida luta forense, enquanto o livro se estraga em algum porão. É verdade que Alaor obteve ganho de causa em primeira instância, mas houve recurso e a obra continua presa. Enquanto isso, meu desolado amigo vê os anos passarem e o seu estafante trabalho se perder em virtude de mero capricho agasalhado pelo lamentável art. 20.

E o pior é que essa postura faz escola. Tenho observado, salvo engano, que as herdeiras de Câmara Cascudo parecem adotar postura semelhante, demonstrando não gostar que outros escrevam sobre ele. Não deve ser por acaso que em minha mais recente visita a Natal percebi que Cascudo já é bem menos conhecido.

Imagino cá com meus botões que a pessoa pública – político, artista, músico, escritor, jornalista etc. – não tem nada a esconder, salvo que exista algo de condenável que procure escamotear. Quanto ao Código Civil, também não é por acaso que alguns comentaristas o rotulam de fascista, não fosse o fato de ter sido supervisor de sua Comissão Elaboradora o notório integralista Miguel Reale.


(
29 de novembro/2013)
CooJornal nº 868



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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