Enéas Athanázio
BIOGRAFIAS E BIÓGRAFOS
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Durante muito tempo a biografia foi considerada um gênero literário menor.
Como reconstituição da vida de alguém, ela se baseia em fatos, não dando
margem à criatividade e se aproximando mais da história, à qual sempre deu
importante contribuição. Com o correr do tempo, as técnicas modernas de
pesquisas e a formação de equipes especializadas que fornecem elementos aos
biógrafos, o gênero evoluiu e surgiram excelentes biografias de incontáveis
personalidades em todo o mundo. Vieram a público biografias minuciosas e
completas, desvendando aos olhos dos leitores as atividades de inúmeras
figuras, mais ou menos conhecidas, lançando luzes sobre determinados episódios
em que se envolveram, corrigindo erros e, não raro, reparando injustiças de
que foram vítimas. Personagens biografados, colocados em seu contexto
histórico, muitas vezes permitiram compreender de maneira mais correta a época
em que viveram e as razões de suas atitudes. Por outro lado, a biografia
constitui uma fonte de aprendizado através da experiência alheia. Em
consequência, o gênero ganhou nova dimensão e hoje tem leitores aficionados em
grande quantidade e em todo o mundo. O Brasil conta com excelentes e
talentosos biógrafos, muitos deles consagrados e cujas obras se colocam sempre
entre as mais vendidas.
Nos dias atuais, no entanto, o gênero vive um impasse em nosso país. É que o
art. 20 do novo Código Civil só permite a publicação de biografias com a
concordância do biografado ou de seus herdeiros, ou seja, as chamadas
biografias autorizadas. Ora, submeter a biografia à análise prévia do
biografado ou de seus herdeiros constitui, na prática, sujeitar a obra a uma
censura antecipada, uma vez que não permitirão, como é evidente, a veiculação
de fatos que não sejam de seu agrado, ainda que verdadeiros. E assim as tais
biografias autorizadas não passarão de retratos parciais e limitados,
desfigurando o gênero, cujo compromisso maior é com a verdade. Temerosas da
revelação de certos atos, muitas personalidades têm feito coro contra a
alteração desse dispositivo infeliz da lei civil, como vem noticiando a
imprensa. É compreensível que as pessoas não concordem com a publicação de
fatos que as desabonem, mas a interferência não pode chegar ao absurdo de
desfigurar a obra. Como biógrafo do mineiro Godofredo Rangel e do catarinense
Crispim Mira, eu não poderia ter realizado essas obras se dependesse de
autorização, uma vez que nem conhecia os descendentes de ambos. Numa súmula
biográfica de um cidadão, que realizei a pedido da família, eu me deparei com
as objeções mais ridículas que se possa imaginar.
Nestes últimos anos a discordância de familiares tem provocado a censura de
muitas obras e até mesmo a apreensão judicial de edições inteiras com grave
prejuízo para as editoras e para os autores, impedindo que seus livros, frutos
de anos de pesquisa e trabalho, sejam distribuídos. Alguns desses casos se
tornaram bem conhecidos e têm sido comentados pela imprensa. Assim, “Roberto
Carlos em detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo, “Noel Rosa, uma biografia”, de
João Máximo e Carlos Didier, e “Lampião, o mata-sete”, de Pedro de Morais,
foram barrados pela Justiça sob a acusação de invadirem a privacidade ou
ofenderem a honra dos biografados. Antes desses, muitos outros aconteceram.
O caso mais estranho, porém, e que tenho acompanhado de perto foi o de meu
amigo Alaor Barbosa, escritor goiano radicado em Brasília. Depois de anos de
estafantes pesquisas e muito estudo, lendo, relendo e treslendo a obra do
Autor, visitando os locais onde ele viveu e entrevistando inúmeras pessoas,
produziu “Sinfonia Minas Gerais: A vida e a literatura de João Guimarães
Rosa”, editada pela LGE. Trata-se de um livro sério, compacto, lastreado em
rigorosas fontes e que reconstitui de maneira fiel a existência do romancista
do “Grande Sertão: Veredas.” Na cuidadosa leitura que fiz da obra, comentada
nesta coluna, nada encontrei que pudesse, mesmo de longe, prejudicar a
reputação ou a memória do festejado escritor. Pelo contrário, o livro só o
exalta e engrandece. Mesmo assim, por insondáveis desígnios, uma das filhas de
Guimarães Rosa ingressou na Justiça e obteve uma liminar determinando a
apreensão de toda a edição. E assim decorreram cinco anos de uma renhida luta
forense, enquanto o livro se estraga em algum porão. É verdade que Alaor
obteve ganho de causa em primeira instância, mas houve recurso e a obra
continua presa. Enquanto isso, meu desolado amigo vê os anos passarem e o seu
estafante trabalho se perder em virtude de mero capricho agasalhado pelo
lamentável art. 20.
E o pior é que essa postura faz escola. Tenho observado, salvo engano, que as
herdeiras de Câmara Cascudo parecem adotar postura semelhante, demonstrando
não gostar que outros escrevam sobre ele. Não deve ser por acaso que em minha
mais recente visita a Natal percebi que Cascudo já é bem menos conhecido.
Imagino cá com meus botões que a pessoa pública – político, artista, músico,
escritor, jornalista etc. – não tem nada a esconder, salvo que exista algo de
condenável que procure escamotear. Quanto ao Código Civil, também não é por
acaso que alguns comentaristas o rotulam de fascista, não fosse o fato de ter
sido supervisor de sua Comissão Elaboradora o notório integralista Miguel
Reale.
(29 de novembro/2013)
CooJornal nº 868
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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