01/11/2013
Ano 17 - Número 864
ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio
IMPULSOS INCONTROLÁVEIS
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Dizer que o escritor belga Georges Simenon
(1903/1989) foi um gênio da narrativa policial seria repetir o que outros
tantos disseram, além de limitar sua atividade literária, uma vez que sua obra
é vasta e contém inúmeros trabalhos de vários outros gêneros. Mas o fato é que
ele foi um prodígio de produtividade que marcou o Século XX, tendo publicado
mais de 200 romances, 155 contos e 25 narrativas autobiográficas, segundo
cálculos aproximados, já que muito escreveu e publicou sob numerosos
pseudônimos. Em 75 desses romances e 30 contos o personagem central é o
comissário Jules Maigret, da Polícia Judiciária francesa, que começou a tomar
forma na mente do autor por volta de 1930 e foi sendo enriquecido de detalhes
físicos e psicológicos até se transformar numa das figuras mais célebres da
literatura ocidental, rivalizando com Sherlock Holmes e Hercule Poirot. Com o
correr dos anos, Maigret se tornou um personagem de imensa popularidade e suas
investigações foram adaptadas para o cinema, a televisão e os quadrinhos por
diferentes diretores e em várias partes do mundo. Homem pesadão, algo
pachorrento, envergando sobretudo com gola de veludo, sempre coberto por um
chapéu e baforando seus cachimbos, Maigret é um tanto taciturno e de poucas
palavras. Tem da sociedade uma “visão psicológica e combate o crime com um
misto de ceticismo e esperança” – como escreveu um crítico. Não usa armas,
convive bem com a discreta esposa (cujo nome nem sequer é mencionado), é
dotado de imensa paciência e analisa os casos de maneira lógica, chegando
sempre ao melhor dos resultados. Para completar, é um líder nato e comanda uma
equipe que funciona como relógio bem azeitado, ainda que na época os recursos
técnicos de investigação criminal fossem limitados.
Entre os recentes lançamentos das obras de Simenon em edições brasileiras está
o romance “Maigret e o Matador” (L&PMPocket – P. Alegre – 2010), em tradução
de Paulo Neves. Nele o célebre comissário quase assiste a um homicídio que
parece sem explicação e destituído de motivo. No correr do inquérito, que se
arrasta com dificuldade sob o assédio da imprensa, o investigador se depara
com o criminoso impulsivo que age sob o comando de uma ordem psicológica
incontrolável. Tipo de homicida raro naqueles tempos, ainda que mais comum nos
dias de hoje. Nessa história Simenon põe à mostra seus conhecimentos de
Psicologia Criminal e vai rebuscar o passado do criminoso em busca dos
elementos que o levaram até o crime. E assim põe à prova, mais uma vez, a
argúcia do comissário. Parece até que ele se diverte colocando obstáculos
diante de sua própria criatura.
Nesse mergulho no passado do criminoso, Maigret vai se deparar com um
provinciano inconformado com a mesmice da pequena cidade natal e que se
transfere para Paris. E na Cidade Luz, labutando pela sobrevivência como
milhões de jovens, não consegue controlar seus impulsos e se envolve nas
malhas da lei. No correr da história, desvenda de maneira espontânea um
passado estarrecedor jamais suspeitado pelos que o conheciam. Mais
interessante que a própria história é a técnica desenvolvida pelo comissário
para identificar o criminoso e esclarecer os fatos. Só mesmo o hábil policial
criado por Simenon poderia chegar ao resultado partindo de tão escassos
elementos.
Antes da confissão, o criminoso tem aguda
consciência de que, ao relatar os fatos, estará cruzando uma linha sem volta.
A partir de suas palavras ele será outro, à margem da sociedade e sozinho
contra ela. Mas ele não se contém e transpõe a barreira. “O homem que mata se
separa, de certo modo, da sociedade. De um minuto para outro, deixa de ser um
indivíduo como os demais” – suspira ele. Mas de nada vale chorar pelo leite
derramado. Entre conformado e temeroso caminha para um destino incerto.
(01 de novembro/2013)
CooJornal nº 864
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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