04/10/2013
Ano 17 - Número 860
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
ORESTINO LEVA-E-TRAZ
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Desde garoto Orestino revelou inusitado interesse pela vida alheia. Sentia
imensa curiosidade pelo que faziam as outras pessoas, pelo que pensavam e,
mais ainda, pelo que acontecia na intimidade de suas casas. Andando pelas ruas
da pequena cidade, imaginava os dramas, tragédias e segredos que aquelas
paredes escondiam. Crimes, traições, adultérios, intrigas, maquinações de
todos os tipos com certeza deveriam existir, envoltos no véu das convenções
sociais. Para penetrar nesse mundo misterioso, aguçou desde cedo os ouvidos,
captando fiapos de conversas, palavras soltas e insinuações que passavam
despercebidas pelas pessoas em geral e dos quais tirava suas próprias
conclusões. Desenvolveu com o tempo um senso de observação que lhe permitia
acompanhar as atitudes de outras pessoas sem demonstrar, mesmo aparentando
interesse no que falavam ao seu redor. Elaborou desde jovem o caráter de
arguto bisbilhoteiro.
Não satisfeito, decidiu ampliar seu raio de investigações da existência
alheia. Conhecendo grande parte da população local, estabeleceu um circuito de
visitas inesperadas, assim como quem deseja apenas rever determinadas pessoas.
Algumas revelaram certa surpresa diante de sua repentina aparição, outras
receberam com naturalidade, ainda mais sabendo que ele era um desocupado. Na
permanência no recesso das casas alheias, Orestino se mantinha antenado como
nunca, procurando captar o máximo possível, observando reações, eventuais
diálogos entre os moradores e tudo aquilo que pudesse fornecer alguma
informação. Estabeleceu com o tempo um método de perguntas, inocentes na
aparência, mas muitas vezes significativas. “E o Fulano, onde está?” –
indagava em tom natural, ainda que soubesse onde ele estava ou o que fazia no
momento. “Beltrano melhorou?” – perguntava de repente, mesmo sabendo que ele
gozava de total higidez. Essas indagações corriqueiras costumavam gerar
diálogos que derivavam para outros assuntos às vezes reveladores. Partindo
dali, alinhavando minúcias, ele chegava a conclusões surpreendentes e
inesperadas.
Com o passar do tempo não conseguia guardar para si o que descobria ou
imaginava ter descoberto e começou a passar adiante. Em cada visita, em cada
encontro, em cada conversa desfiava um assombroso rol de fatos reais ou
imaginários e se transformou num incorrigível leva-e-traz. A imaginação sem
limites o levava a elaborar as mais estranhas hipóteses a respeito de outras
pessoas e, pior ainda, a divulgá-las na cidadezinha como se verdadeiras
fossem. As consequências foram graves mas nem assim segurou a língua viperina.
Parecia sentir um prazer imenso com as intrigas, desavenças, discussões e até
tragédias que provocou ao longo de muitos anos. Sorrindo atrás dos bigodes,
observava o sofrimento alheio com a mesma frieza do artista consumado
contemplando a própria criação.
A população, aos poucos, começou a observar aquela figura estranha, sempre
interessada nas coisas da vida alheia. Ligando pontos daqui e dali, as
suspeitas foram crescendo e os cuidados se impondo. Tão logo ele aparecia, uma
censura pesada recaía sobre as atitudes e as conversas entre as pessoas da
casa. O instinto de defesa imperou em toda parte.
Mas era tarde. Orestino, sagrado o maior leva-e-traz da história da cidade,
havia exercido sua atividade por mais de meio século. E, quando morreu, todos
suspiraram de profundo alívio.
Desde então, qualquer indivíduo de língua mais afiada recebe dos moradores um
só qualificativo:
- É um Orestino!
(04 de outubro/2013)
CooJornal nº 860
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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