02/08/2013
Ano 16 - Número 851
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
O SERTÃO DE RIOBALDO (4)
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Riobaldo Tatarana, narrador
de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, é um dos personagens mais
curiosos da literatura nacional. Homem do sertão, encarna como ninguém o
conhecedor daqueles ínvios dos Gerais mineiros e goianos, falando sobre eles
com a precisão e a familiaridade de quem os percorreu em todas as direções,
atento e interessado, observando e aprendendo. Também impressiona a imensa
galeria de figuras que conhece, desde os coronéis senhoreantes até os mais
humildes dos viventes sem nome: fulão, sicrão, beltrão e romão. E surgem então
os mais desusados e estranhos nomes e alcunhas, revelando a portentosa
imaginação criativa de Guimarães Rosa. É um livro tão amplo, repleto de fatos
e figuras, que me parece impossível ao leitor, por dedicado que seja,
apreendê-lo em toda sua grandeza.
Sensível à imensidão do ambiente que o cerca, Riobaldo sente com intensidade a
pequenez do ser humano naquele meio e conclui que “esses Gerais em serras
planas, beleza por ser tudo tão grande, repondo a gente pequenino”, porque
“homem a pé, esses Gerais comem.” Em outra passagem, afirma: “Lugar sertão se
divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze
léguas, sem topar com casa de morador...” Isso se explica porque “o sertão
está em toda parte.” E tem suas leis próprias: “Sertão é onde manda quem é
forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um
pedacinhozinho de metal...” Mas sertão é mais, muito mais. “Sertão é onde o
pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito
perigoso.” Tudo lá é tão parado que “no sertão, até enterro simples é festa.”
Como homem inteligente, deseja sair do sertão: “A gente tem de sair do
sertão!” Mas isso não é fácil, então a solução é uma só: “Mas só se sai do
sertão é tomando conta dele a dentro...” O sertão, enfim, á uma jornada, um
caminho, é uma “travessia perigosa, mas é a da vida. “ Como a vida, “se alteia
e se abaixa”, mas “as curvas estendem (o olhar) para sempre mais longe” e “ali
envelhece vento...” Sempre alimentando a esperança, a vida vai passando e a
velhice chegando. Ninguém como Riobaldo entende o sertão.
Mais adiante, em seu perlongado monólogo, Riobaldo se refere ao Coronel
Rotílio Manduca, em sua Fazenda Baluarte. E cria, então, um dos tantos enigmas
que Guimarães Rosa semeou em seu romance. Segundo os intérpretes do escritor,
Rotílio Manduca teria sido usado por ele como modelo para o terrível Zé Bebelo,
chefe jagunço que pretendia limpar o sertão da jagunçagem. E assim, Manduca e
Bebelo, o modelo e o personagem, passam a conviver na mesma história, lado a
lado, deixando o leitor diante de uma questão insolúvel. Rotílio Manduca,
segundo se dizia, era um pistoleiro do vale do São Francisco, hábil na facada
e no tiro, a quem atribuíam mais de duzentas mortes. “Sequinho, espigadinho,
vestido cidadão, com mãozinhas pequenas, pezinhos, e do ar sempre assustado”,
transformara-se numa espécie de justiceiro daquelas veredas, fazendo justiça
sumária e com as próprias mãos. Não obstante, admirava os escritores e poetas,
lia os clássicos e cultivava amigos intelectuais. Deixava de lado o gibão de
couro, envergava ternos de linho brilhante e desfilava por Belo Horizonte e
pelo Rio de Janeiro, onde era visto em ilustres companhias, entre as quais
Medeiros e Albuquerque, o ministro Ataulfo de Paiva, do STF, e o professor de
Finanças Alberto Deodato, em cuja casa se hospedava. Relatava este último que
Rotílio aparecia sem aviso, portando imensa quantidade de disfarces (batinas,
bigodes e barbas postiços, óculos escuros de vários modelos, perucas etc.),
instalava sua rede na varanda e lá permanecia por alguns dias. Bem vestido e
elegante, frequentava lugares da moda da antiga capital e, de repente, sem
aviso ou despedida, anoitecia e não amanhecia. Por ironia da sorte, foi
assassinado a facadas enquanto dormia no camarote de um navio-gaiola, embalado
pelas águas do Velho Chico. Não se sabe onde termina a verdade histórica e
começa a lenda, mas isso se explica porque – como diz Riobaldo – “tudo naquela
parte dos Gerais era ilusão de haver e não se saber. O mundo ali tinha de ser
e de se recomeçar...”
(02 de agosto/2013)
CooJornal nº 851
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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