05/07/2013
Ano 16 - Número 847

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

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Enéas Athanázio



OS SEGREDOS DE AGATHA
 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Depois que John Curran descobriu os arquivos de Agatha Christie, em Greenway, Devon, não teve mais sossego. Autorizado por Mathew Prichard, neto da escritora, enfurnou-se naquele aposento e passou a remexer sem cansaço na imensa papelada lá existente. Em meio a toda sorte de documentos, deparou-se com nada menos que 73 cadernos com variadas e surpreendentes anotações feitas pela autora de algumas das mais célebres histórias policiais da literatura universal. Debruçado sobre eles, descobriu que sua numeração era aleatória, não havia sequência ou ordem nas anotações e muitas vezes o mesmo assunto surgia em vários deles. Para sua surpresa, e dos futuros leitores do livro, não existiam anotações de caráter pessoal, confissões, desabafos, confidências e outros textos próprios de um diário. Eram, na verdade, notas, lembretes, esboços, desenhos, registros de ideias, enredos resumidos e desfechos de romances e contos que pretendia escrever ou que havia escrito. Muito daquele material havia sido aproveitado, em boa parte alterado ou rejeitado mais tarde. Mas, se não havia assuntos íntimos e pessoais, valiam como elementos para um estudo de arqueologia literária, desvendando o método por ela usado para construir tantos e tão variados casos policiais, muitos deles intrincados e complexos. E como tudo que respeita a um grande escritor é valioso, todo o conteúdo dos tais cadernos foi examinado em minúcia no livro “Os diários secretos de Agatha Christie” (Editora Leya – S. Paulo – 2010).

Grande conhecedor da obra da escritora, Curran extrai todas as consequências das anotações contidas nos cadernos. Compara meros esboços com textos definitivos, analisa semelhanças, revela o que foi aproveitado e rejeitado. Fica evidente que a escritora, embora dotada de privilegiada memória, se valia de anotações sumárias de ideias que lhe ocorriam para que não se perdessem. Seu processo criativo parecia ser mental, embora não dispensasse o auxílio de algumas notas. Fica bem claro que, como princípio básico, ela nunca se arriscava a escrever sobre aquilo que não conhecia.

É curioso notar que o principal personagem de Agatha, típica escritora inglesa, fosse belga – o policial aposentado Hercule Poirot. Dotado de grande inteligência, bastante culto e com notável “faro policial”, ele às vezes transmite a impressão de que mais adivinha que descobre. Também a personagem Ariadne Oliver, tida como alter ego de Agatha, é muito presente no livro. Não gosta de jantares literários, detesta discursar e escrever com outros autores. Seu compromisso é com as letras, não com as badalações em torno delas.

Estudiosa de Criminalística e Medicina Legal, a escritora inglesa foi mestra na arte de engendrar as mais criativas formas de assassinatos usadas por seus incontáveis personagens. Embora eles não se valessem de armas de fogo com tanta frequência como em outros autores, matavam com facadas, pancadas, asfixia, tombos e muito veneno. No capítulo dos venefícios, até a intoxicação por fósforo foi usada. Ela provoca uma espécie de aura, ou hálito, em torno da vítima, fato que ela própria não percebe mas outras pessoas podem notar, em especial na escuridão, e que às vezes é considerado um fenômeno sobrenatural. Mas Poirot não tarda a descobrir!

Em apêndice, o livro contém dois contos inéditos de Agatha, ambos tendo ao centro o invencível Poirot: “A captura de Cérbero” e “O incidente da bola de Cachorro.”

No primeiro deles, ambientado no período anterior à II Guerra Mundial, transparece a angústia reinante em todo o mundo na expectativa iminente do grande conflito. Tudo é atribuído a August Hertzlein, “o maior de todos os ditadores”, no qual o leitor identifica Hitler logo nas primeiras linhas. Seus discursos de guerra incitavam a população e inflamavam a Europa. Numa trama bem planejada, simula-se sua morte com o uso de um sósia e ele é sequestrado. Localizado e libertado por Poirot, ressurge como um pacifista, repudiando a guerra e pregando a paz e a solidariedade. Havia se convertido e o mundo voltava a respirar aliviado. Mesmo que o resgate do ditador pareça um tanto simplista, a história, sem dúvida, espelha o desejo dos europeus, inclusive de Agatha, de que não houvesse guerra e a paz voltasse a reinar. Desejo que, como é sabido, não se concretizou.

No segundo conto, valendo-se de pequenos indícios, Poirot desvenda mais um crime cometido com veneno visando a obtenção de uma herança. Mas, se não havia uma pedra no meio do caminho, como no poema de Drummond, havia uma bola de cachorro no alto da escada, logo no dia em que ela não poderia estar lá porque o cachorro havia pernoitado na rua. No entanto, ligando pontinhos quase apagados, Poirot repõe as coisas nos lugares e, de quebra, faz justiça.

Enfim, o livro de John Curran é um profundo mergulho na obra da celebrada Agatha Christie.



(05 de julho/2013)
CooJornal nº 847



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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