01/03/2013
Ano 16 - Número 829
ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio
A HISTÓRIA DO SUL |
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A história das Missões Jesuíticas é das mais interessantes que existem, ainda
que não seja das mais conhecidas. Livro revelador e que me foi oferecido pelo
Autor é “Memoriando a História do Sul – Avaliação Crítica”, de Ruy Nedel (Padrereus
Livraria e Editora – P. Alegre – 2012), no qual ele disseca o assunto e o
submete a uma revisão justa e criteriosa, à luz da melhor interpretação
permitida pelos elementos disponíveis. Para tanto rebuscou sem cansaço a
literatura e a documentação existentes, revelando-se minucioso e seguro
conhecedor dos fatos e personagens dessa utopia que deu certo. Abordou os fatos
com sinceridade e coragem, mesmo que correndo o risco de desagradar até mesmo ao
leitor. Mas, como ele próprio afirma, seu propósito foi o de registrar as
conclusões a que chegou de maneira clara e fiel ao seu pensamento.
Os padres jesuítas que se instalaram no sul e foram tratar com índios ainda na
idade da pedra eram de uma inteligência impressionante na busca de seus
objetivos. Souberam catequizá-los sem violentar os seus arraigados costumes e
assim obtiveram sua adesão. Usando da força do trabalho indígena, fundaram
povoados e depois cidades cujo grau de organização e desenvolvimento foi dos
maiores alcançados na época. Havia moradas para todos, abastecimento permanente,
alimentação sadia e até mesmo a observância de princípios higiênicos. Os índios
aprendiam a plantar e colher com técnica aprimorada, assim como a fabricar
muitos utensílios e vestimentas e até mesmo praticavam a música e os cantos.
Mantendo certa hierarquia, todos viviam em paz e as cidades prosperavam à sombra
das igrejas que edificaram.
Tão organizadas e poderosas se tornaram que começaram a despertar a inveja e o
temor das cortes européias. Segundo os maledicentes cortesãos, elas ameaçavam se
tornar um Estado dentro do Estado e poderiam, de repente, se declarar
independentes, o que seria intolerável. Segundo o Autor, porém, tais propósitos
jamais estiveram na mira dos padres, obedientes a El Rey e ao Vaticano, aos
quais se submetiam através da Ordem de Santo Inácio de Loyola. Além disso, eram
vítimas frequentes dos ataques dos bandeirantes sequiosos por prear índios para
o trabalho servil. Para completar, o governador e outras autoridades convocavam
com frequência numerosos combatentes indígenas para defendê-los de ataques
inimigos ou ajudá-los nas sortidas conquistadoras. Assim, pouco a pouco, as
Missões foram sendo desfalcadas de homens e de bens, entrando num processo de
decadência. Desprestigiados e impotentes, os padres, que haviam feito a opção
pelos índios, se viram impedidos de defendê-los e as Missões desapareceram,
ainda que deixando marcas indeléveis na História, na arquitetura e na tradição
oral.
Estava aberto o caminho para o genocídio que quase exterminou os guarani e
outras tribos. Eles, que haviam recebido os brancos com toda confiança,
concedendo-lhes a inata hospitalidade, viram ruir sua cultura, crenças,
costumes, organização social e realizações materiais. A violência campeou
desenfreada. Foram brados de resistência, ainda que inúteis, as guerrilhas de
Sepé Tiaraju e rebeliões em vários lugares e ocasiões. O grito libertário do
grande cacique-pajé Nheçu, em legítima defesa de seu povo, só fez acirrar os
ódios, a perseguição sem tréguas e a terrível mortandade. Ele desapareceu,
ignorando-se se foi assassinado ou pereceu nas águas do grande rio. Deixou um
exemplo de coragem e resistência que a juventude da região celebra no Manifesto
Nheçuano, já partindo para seu quarto ano de atividades.
Após a grande chacina de Caaibaté, para que não caísse em mãos inimigas, os
próprios indígenas incendiaram a magnífica igreja de São Miguel, o mais
imponente testemunho da passada grandeza. E ocultaram nas matas muitas estátuas
de santos esculpidas em madeira junto com os padres (p. 106). Tinham consciência
de que tão artísticos trabalhos nada significariam para os que tinham apenas o
desejo de obter ouro, pedras preciosas e lucros com o braço escravo. “Os
jesuítas – escreve o historiador – não tiveram mais condições para acertos nem
para erros. Três anos após Caaibaté estavam sendo expulsos e jogados para morrer
nas masmorras portuguesas” (p. 107).
A saga missioneira, no entanto, influenciou na formação do povo e permanece no
inconsciente coletivo como exemplo do que pode realizar uma comunidade unida em
torno de objetivos comuns. E seu desfecho sangrento como algo a ser sempre
lembrado para que nunca mais se repita.
(01 de março/2013)
CooJornal nº 829
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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