31/08/2012
Ano 16 - Número 802
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
O MISTERIOSO JOÃO DA BANHA |
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Comecei a ouvir referências ao João da Banha quando minha mãe adquiriu um sítio
para os lados da Lança, nas proximidades de Porto União, à margem da ferrovia
que ligava aquela cidade a Mafra. Tratava-se de um pequeno ladrão, espécie de
descuidista, que havia recebido esse apelido por ter furtado uma porção de banha
na casa de um turmeiro da estrada de ferro. Seu nome verdadeiro ninguém sabia ao
certo e jamais falei com uma pessoa que o tivesse encontrado ou, pelo menos,
avistado. Não se sabia se era alto ou baixo, gordo ou magro, branco ou preto,
jovem ou velho. Imaginava-se que fosse branco, muito alto e magro, vestindo
roupas esfarrapadas, com cabelos e barbas pretos e longos. Mas tudo não passava
de meras hipóteses. Sabia-se apenas que vivia perambulando pela ferrovia naquele
trecho entre as duas cidades, sem paragem ou morada, aproveitando todas as
oportunidades para pôr a mão no alheio, furtando coisas miúdas e de pouco valor,
de preferência roupas velhas, alimentos e algum dinheiro. As casas dos turmeiros,
agrupadas em pequenas vilas isoladas à margem dos trilhos, constituíam o seu
alvo predileto. Os homens passavam o dia no trecho, as mulheres no roçado e as
crianças na escola, tudo contribuindo para a ação furtiva do habilidoso
meliante. Embora fosse vasto o seu currículo de furtos, jamais foi apanhado em
flagrante e, a bem da verdade, nem sequer visto. Aliás, todo e qualquer
desaparecimento já passava a ser atribuído a ele, mesmo sem prova ou mero
indício. Suspeitava-se de que até furtos praticados por algum malandro de
famílias gradas fossem lançados nas costas largas do andarilho, livrando-se
assim o verdadeiro autor. João da Banha constituía o maior mistério.
Ainda que não se soubesse de qualquer violência por ele praticada, João da Banha
inspirava grande medo nas crianças e era objeto do rancor dos moradores que
viviam a ameaçá-lo de surras e cadeia, na remota hipótese de encontrá-lo. Ele,
porém, continuava a agir, aparentando a maior tranquilidade, desafiando aquela
gente e talvez até se divertindo. Surgiam frequentes boatos de que estava
atuando aqui ou acolá, furtando ovos numa casa, uma volta de linguiça em outra,
milho verde na roça deste e melancia madura na plantação daquele. Couros
enterrados indicavam cabras furtadas e carneadas na calada da noite; pelegos
escondidos no mato explicavam o desaparecimento de ovelhas. E o indigitado João
da Banha aparecia aos olhos do povaréu como um prodígio de astúcia. Pois,
afinal, quem poderia ser o autor de tais furtos se não ele? Se para os famosos
ladrões da história a prática de um só e único crime perfeito já constituía a
glória, imagine-se o justificado orgulho de João da Banha após tantos e tão
desafiadores furtos praticados com perfeição, sem deixar o menor indício!
Os reiterados comentários a respeito dele vararam os limites locais e foram
bater nos ouvidos da polícia e da imprensa. Os jornais passaram a cobrar das
autoridades uma severa providência contra o habilidoso ladrão. Foi aberto
inquérito, nos rigores da lei, e os policiais varejaram a região em busca do
famigerado larápio. Tudo inútil. Nada mais encontraram além das curiosas
histórias sobre as constantes sortidas daquele ladrão contumaz, digno de figurar
nas melhores histórias do Comissário Maigret, de Sherlock Holmes ou de Hércule
Poirot. E nos jornais e emissoras de rádio João da Banha virou assunto
permanente, preenchendo largos espaços das páginas e das transmissões, sem que
isso nem de longe abalasse as atividades do intrigante personagem.
Tanto é verdade que, ainda há poucos dias, lendo um jornal da região, nele
deparei com referências a João da Banha. Segundo se acredita por lá, mesmo após
tantos anos ele continua a vagar sem cansaço pelo leito da ferrovia, agora
desativada, pisando dormentes carcomidos pela intempérie, cruzando pontes
entregues ao abandono e acompanhando as curvas, subidas e descidas dos
centenários trilhos enferrujados. Indiferente às chuvaradas, ao frio terrível
dos invernos brabos, às geadas e até a algumas nevadas, ele prossegue em sua
teimosia de viver à custa do alheio, mesmo contando – segundo meus cálculos –
com mais de um século de existência. João da Banha é um prodígio de
sobrevivência ou, talvez, da imaginação coletiva.
(31 de agosto/2012)
CooJornal nº 802
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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