06/06/2012
Ano 15 - Número 790

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


A UNIVERSIDADE INFORMAL

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Segundo depoimentos insuspeitos, “Tenda dos Milagres” seria o romance preferido de Jorge Amado dentre todos os que escreveu. Como se trata de um romance que exigiu muito trabalho e pesquisa, inclusive a releitura de obras sobre antropologia e sociologia, obrigando seu autor a um convívio prolongado com suas histórias e personagens, talvez estivesse aí a causa dessa confessada preferência. É curioso notar, porém, que a preferência do autor não parece coincidir com a dos leitores, uma vez que outras obras de sua autoria obtiveram maior aprovação, como é o caso de “Gabriela, Cravo e Canela.”

Em “Tenda dos Milagres” aparece um dos mais perfeitos e instigantes personagens de toda a galeria de Jorge Amado – Pedro Archanjo. Na opinião da crítica, é uma das mais perfeitas figuras que povoam o vasto universo do romancista, um personagem coerente, com personalidade bem definida e que consegue captar as simpatias dos mais variados tipos de leitores. Ele é a figura central do romance sem qualquer esforço para tanto, sendo apenas o que de fato é. Não foi inspirado por uma pessoa em particular, mas “a soma de muita gente misturada”, como declarou o seu próprio criador. Nele há vestígios de descendência ibérica e africana, ou seja, é mulato. Simples bedel da Faculdade de Medicina, amigo da prosa e de boa cachacinha, admirador e figura graduada do candomblé, agitador e mulherengo, conhece todo mundo e perambula sem cansaço pelas ruas da cidade. E, no entanto, no recato de seu casebre estudava com paixão, lia os grandes mestres, anotava suas observações e escrevia livros dos quais poucos tomavam conhecimento. É na ladeira do Tabuão, número 60, sede de humilde tipografia, que ele estuda, ensina, orienta. Lá mestre Lídio Corró faz impressões, desenha cenas de milagres, comanda a reitoria dessa universidade informal da qual Pedro Archanjo é o reitor.

Até que, muitos anos após seu falecimento, vem ao Brasil o sábio norte-americano James D. Levenson, professor universitário e detentor do Prêmio Nobel, e, para geral espanto, declara sua admiração pela obra de Pedro Archanjo, a quem considerava um verdadeiro gênio. Começa então uma corrida em busca dos livros dele e não tarda a surgir a idéia de festejar com toda pompa o seu centenário de nascimento. Nessas obras, porém, Pedro Archanjo contraria a ciência oficial e os pregoeiros do “racismo científico”, desde Lombroso e Ferri até renomados mestres locais, vivos e mortos, entre eles Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Com base nos seus estudos e observações, ele sustenta que a miscigenação foi a grande contribuição do país para a solução do problema racial, a solução brasileira para o conflito das raças. E exaltava, nesse sentido, a colonização portuguesa porque os lusos não abrigavam qualquer preconceito contra o negro, antes pelo contrário. Nessa conciliação das raças, teria sido precursor de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., entre outros.

Nada disso, no entanto, impediu os festejos do centenário. Os detentores do poder se apropriam do personagem, deturpam, alteram, escondem e escamoteiam, transformando-o num tipo heróico que em nada lembrava o homem que ele foi. Como afirmou o crítico João José Reis, o livro “pode ser lido como história social, cultural e até intelectual, alegórica mas verossímil em muitos aspectos. Ajuda a criar essa impressão o fato de Jorge Amado ter construído personagens e tramas a partir da história real.”

Sem contar, é claro, o prazer da leitura que sempre proporcionam os livros desse brasileiro universal cujo centenário de nascimento se comemora neste ano.


(06 de junho/2012)
CooJornal nº 790



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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