27/04/2012
Ano 15 - Número 784

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


O JECA TATU

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Apesar de ter sido o personagem literário mais conhecido do país, tenho a impressão de que Jeca Tatu está caindo no esquecimento das novas gerações. A soturna figura do Jeca Tatu, sugando o cigarrinho de palha e acocorado sobre os próprios calcanhares se tornou das mais célebres, inclusive graças à propaganda dos produtos farmacêuticos do Laboratório Fontoura, o criador do célebre Biotônico. Os filmes de Mazzaropi, em que ele próprio interpretava o Jeca, feio e desajeitado, contribuíram para divulgar o personagem. Até a linguagem foi influenciada pela triste figura do Jeca e ela invadiu os dicionários como sinônimo de pessoa caipira, atrasada e preguiçosa, criando até derivados, como jecoide, jequice, jecolândia etc. Tornou-se, enfim, um habitante do imaginário nacional, provocando discussões sem conta. Para muitos, o Jeca foi um retrato veraz do brasileiro; para outros, uma lamentável caricatura. Seja como for, o fato é que jamais um personagem criado por escritor brasileiro provocou tantas e tais manifestações. E que continuam a acontecer ainda hoje.

O Jeca Tatu é quase centenário. Nasceu em 1914, não em conto de Monteiro Lobato, como às vezes se diz, mas em dois artigos publicados no jornal “O Estado de S. Paulo.” Naquele ano Lobato residia na Fazenda do Buquira, que havia herdado do avô, em plena Serra da Mantiqueira. Os queimadores de matas, seguindo a velha praxe, atearam fogo nos seus roçados para preparar as pequenas lavouras de subsistência. Em virtude da seca, o fogo se propagou pelas terras do fazendeiro Lobato, num fogaréu incontrolável, provocando-lhe imensos prejuízos. Indignado, ele escreveu o artigo “Velha Praga”, no qual criticava com veemência o hábito das queimadas, e o enviou à seção de queixas e reclamações daquele jornal. A redação, impressionada com a qualidade do texto, publicou-o com grande destaque. Em pouco tempo o artigo provocava acesa polêmica e era transcrito em mais de oitenta jornais pelo país a fora. Seguiu-se, na mesma linha, o artigo “Urupês”, e neles nascia o personagem que ganhou mundo. Segundo a lenda, foram tais artigos que transformaram Lobato em escritor, embora, na verdade, ele já fosse senhor da arte de escrever e muito tivesse produzido.

Entre os recentes ensaios sobre o Jeca Tatu e seu significado, está o livro “As Metamorfoses do Jeca Tatu”, de Aluizio Alves Filho (Inverta Editora – Rio – 2003), em que o autor estuda a questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato. Mostra ele que o personagem, desde seu nascimento, sofreu alterações ou metamorfoses conforme a evolução de seu próprio criador e suas meditações a respeito em face da realidade nacional. Assim, o Jeca Tatu, que havia nascido como o caipira preguiçoso e acomodado, aos poucos passa a ser visto como o doente mal alimentado e invadido por todos os vermes existentes. O Jeca não “é” assim, - diria Lobato, - ele “está” assim porque é vítima de todas as moléstias resultantes da miséria e do abandono. À medida que mais conhece o país, Lobato dá novo passo na elaboração do Jeca e passa a considerá-lo típico exemplar de indivíduo de país subdesenvolvido. Com a experiência de quatro anos nos Estados Unidos, como adido comercial, faz as comparações e conclui que o pobre Jeca não passa do produto de um sistema injusto e desigual. Por fim, mais tarde, depois de ter dado com os costados na cadeia, começa a enxergar o Jeca por outro prisma. Travestido em Zé Brasil, o Jeca é o trabalhador mal alimentado, sem assistência alguma, vítima de todas as explorações por parte dos “coronéis” que dominavam naquele período histórico e que, em menor escala, sobrevivem até hoje. E nesse ponto – diz o ensaísta – ocorre a ruptura entre o Jeca Tatu e o imaginário nacional. Enquanto preguiçoso e vadio, foi bem aceito porque coincidia com o preconceito dominante; quando se torna vítima, é relegado ao esquecimento e ao silêncio porque não convém apontar desigualdades. Daí a razão pela qual o pobre Jeca Tatu, abandonado na realidade, passa a ser abandonado também pelo imaginário nacional.


(27 de abril/2012)
CooJornal nº 784



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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