Enéas Athanázio
BALLARDIANAS |
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Nascido em Shanghai, na China, embora filho
de pais ingleses, J. G. Ballard (James Graham - 1930/2009), foi uma figura
singular e única na literatura inglesa. Tal foi sua influência que ensejou a
expressão “ballardiano”, segundo os críticos “uma categoria essencial ao
entendimento do mundo pós-moderno.” Depois dele, outros autores passaram a
ser assim tratados, criando-se uma nova corrente ou tendência literária
antes desconhecida. Tendo iniciado a carreira de escritor como autor de
obras de ficção científica, gênero pouco acreditado, percebeu mais tarde que
ele não lhe bastava e atirou-se em voos mais ousados e que causaram
perplexidade nos meios literários conservadores, em especial na Grã
Bretanha. Nessas obras ousadas e sem similar, ele “realizou um brilhante
catálogo experimental das atrocidades patológicas do capitalismo tardio”,
segundo o crítico Martin Amis. Produziu obras que foram rotuladas de
“romances-catástrofes” nas quais “deturpou as convenções do gênero”,
discorreu sobre “as possibilidades eróticas dos acidentes de tráfego e
publicou uma série de romances que subvertem elegantemente as nossas noções
de comunidade e forma literária”, como afirmou um biógrafo. O consumismo
desenfreado, a fixação pela imagem, a ânsia de ter, a correria sem fim do
cotidiano, o culto da velocidade, a solidão no meio de multidão, a
comunicação superficial, o relacionamento frio entre as pessoas, inclusive
entre pais e filhos, e outros tantos aspectos da vida moderna encontram eco
em suas obras, ainda que sem preocupação ideológica, mas encarados como
fatos do dia a dia das pessoas. Entre seus livros mais conhecidos estão
“Crash – Estranhos Prazeres”, “O Mundo de Cristal”, “Mundos em Chamas”, “O
Império do Sol” e “Milagres da Vida”, estes dois autobiográficos, o último
publicado pela Cia. das Letras (S. Paulo – 2009). “A plástica facial da
princesa Margaret” e “Por que quero ferrar Ronald Reagan” tiveram intensa
repercussão e mereceram furiosas investidas. Tranquilo em meio à tempestade,
ele afirmava: “Eu vejo meus livros como alertas. Sou o sujeito na beira da
estrada que grita: Devagar!”
Em suas memórias (doloridas), Ballard
recorda a infância numa Shanghai de contrastes entre o luxo das mansões dos
estrangeiros e a miséria generalizada, tudo mesclado à jogatina, à
prostituição, corrupção e atividades incessantes das gangues criminosas. Nas
andanças de bicicleta pela cidade presenciou as mais chocantes cenas de
violência, enquanto legiões de miseráveis se arrastavam pelas ruas à cata de
comida e implorando por esmolas num frio de congelar. Jamais esqueceu do
velhinho que permanecia mendigando nas proximidades de sua casa, de latinha
em punho, enquanto a neve o recobria de uma camada que mais parecia um
cobertor. Quando indagou à mãe por que ela não lhe dava um prato de sopa
quente, ela respondeu que, se o fizesse, no dia seguinte haveria cinquenta
naquele local. E depois veio a guerra e a invasão japonesa. A liberdade dos
estrangeiros foi sendo cerceada, dia a dia, até que foram recolhidos a um
campo de prisioneiros, em Lunghua, onde ele e a família, acostumados a viver
numa mansão, tiveram que se amontoar num minúsculo quarto sem divisões, onde
viveram durante dois anos e meio. Nesse período viveu as mais estranhas
experiências, inclusive presenciando o estrangulamento de um chinês por um
soldado japonês, sem qualquer motivo aparente, e com a maior frieza, diante
dos olhares indiferentes de outros. Marcado por esse passado de miséria e
violência, como cicatrizes provocadas por ferro em brasa, mudou-se para a
Inglaterra, país de que era cidadão. Estava certo de que nunca retornaria à
China, onde a grande marcha de Mao-Tsé-Tung avançava e não tardaria dominar
o país. Para sua surpresa, encontrou um país arrasado pela guerra, com o
povo empobrecido e tristonho, muito diferente daquele mostrado na propaganda
oficial de pós-guerra, orgulhoso da vitória e confiante no futuro. Sua
impressão foi a de que o império estava no fim, havia acabado e perdido o
ânimo de lutar. E foi então que começou a lutar pela vida, tateando para lá
e para cá, mas convencido de que queria ser apenas escritor.
Como
toda experiência, boa ou má, acaba influindo na obra do escritor, Ballard
obteve invulgar sucesso e seus livros de memórias causaram grande impacto
nos leitores. Vários de seus romances foram adaptados para o cinema em
filmes de muita aceitação. Mas não foi feliz na vida particular, perdeu a
esposa muito cedo e se tornou pai-e-mãe de três filhos, aos quais procurou
dar o carinho que nunca mereceu. Para completar, ficou gravemente doente e
foi em estado quase terminal que concluiu “Milagres da Vida.”
A
leitura das memórias “ballardianas” me leva a um profundo suspiro de
agradecimento por ter nascido brasileiro. Graças a Deus, à sorte ou ao acaso
nasci neste país, infelizmente tão maltratado e vilipendiado por tantos de
seus filhos.
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e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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