13/04/2012
Ano 15 - Número 782
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
DE COSTA A COSTA |
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Em mais uma de suas viagens radicais, o escritor e “globe-trotter” gaúcho Airton
Ortiz levou a cabo uma grande aventura. Com coragem e determinação, limitados
recursos financeiros e muita curiosidade, cruzou sozinho o continente americano,
desde o Pacífico até o Atlântico, usando para tanto os únicos caminhos
disponíveis, ou sejam, os imensos e caudalosos rios amazônicos. O resultado foi
mais um livro de leitura saborosa em que ele relata, em linguagem simples e
direta, todas as peripécias do caminho, o que viu e aprendeu ao longo do
percurso, e desvenda aos olhos do leitor todo o exuberante panorama da
vastíssima região percorrida. “Travessia da Amazônia” foi publicado pela Editora
Record em 2004 e integra a série Aventura Extrema.
Inspirado na viagem imaginária de Júlio Verne e nos relatos históricos, Ortiz
decidiu retomar os mesmos caminhos fluviais e cruzar a floresta de costa a
costa. Para bem situar o leitor, começa por expor as diferenças entre Amazônia
real e legal, esta criada através de disposições legislativas, ainda que a
primeira ocupe 40% das florestas tropicais do planeta. Numa breve incursão
histórica, lembra ele que Francisco de Orellana foi o primeiro branco a descer
os rios amazônicos, partindo dos Andes e chegando ao Atlântico, em 26 de agosto
de 1542, quando o Brasil ainda engatinhava. Frei Gaspar de Carvajal foi o
cronista da expedição, a ele se devendo a lenda das amazonas, inspirada numa
tribo de mulheres guerreiras, que seriam “índias altas e brancas que lutavam
como se fossem homens, e que acabou dando nome ao rio, à região e ao Estado do
Amazonas” (p. 14). As peripécias de Orellana em sua travessia são de espicaçar a
imaginação de quem tenha algum espírito de aventura. Júlio Verne, por sua vez,
escreveu o livro “A jangada – 800 léguas pela Amazônia”, publicado em 1881, no
qual relata as aventuras de Joam Garral, um fazendeiro brasileiro, e sua
família. Para chegar a Belém, ele construiu gigantesca jangada a ser conduzida
pela correnteza, sobre a qual instalou verdadeira aldeia flutuante. A curiosa
viagem durou quatro meses e meio, culminando “não em um mas em dois casamentos,
para deleite dos leitores franceses da época” (p. 15). As vivências de Garral
são inesquecíveis.
Assim inspirado, Ortiz colocou nas costas a pesada mochila que sempre o
acompanha e pôs o pé na estrada, ou melhor, nas diversas e estranhas embarcações
que o levarão ao destino. Partindo de uma Lima conturbada pela greve geral dos
professores, tomou o rumo oposto ao das levas de turistas e fez por terra o
itinerário até Pucallpa, percorrendo estradas carroçáveis em precários e lerdos
ônibus de carreira. Assim, subiu a Cordilheira por um lado e desceu pelo outro,
subindo e descendo pelas escarpas, margeando precipícios aterradores, até
alcançar as margens do Ucaiale, onde teve início a navegação através da
misteriosa selva peruana. Sua primeira observação foi a respeito da completa
diferença entre os peruanos do litoral, descendentes dos incas, e os amazônidas
do mesmo país, embora ligados por estrada de rodagem, aliás, a única. Anota
também a impressionante quantidade de serrarias plantadas à margem do rio,
entregues à incessante faina de devastar as florestas, e as embarcações
carregadas de toras que descem em direção às grandes cidades da região. Registra
ainda a surpreendente informação de que “em seis países da América do Sul ainda
vivem índios não contatados pelo homem branco e o coordenador da Coordenação
Geral dos Índios Isolados, Sydney Possuelo, estima que apenas no Brasil os
índios isolados estejam espalhados por uma área de doze milhões de hectares” (p.
61). São informações desconhecidas dos brasileiros em geral.
Admitido, afinal, como passageiro da barca de cargas Marquito III, navega por
cinco noites até Iquitos, a mesma que Mário de Andrade visitou em 1927, conforme
relatou em “O turista aprendiz.” Dali em diante sucedem-se as embarcações em que
viaja, os rios se juntam e trocam de nomes, visita aldeias indígenas, povoados e
cidades, inclusive Manaus, Santarém, Parintins e Belém, até chegar à foz do
Amazonas e concluir a extraordinária jornada. Ao longo do percurso faz
interessantes observações históricas, sobre o folclore, as línguas faladas, a
flora exuberante e a fauna, sem esquecer as crenças e os mitos indígenas, a
culinária e as bebidas regionais, em especial o guaraná e o açaí. É, enfim, um
livro riquíssimo a respeito de uma região pouco conhecida dos brasileiros que
não parecem demonstrar muito interesse por ela. Entre as excelentes fotos surge
uma muito curiosa mostrando um indígena peruano envergando camisa de jogador de
futebol, onde está grafada a palavra Brasil, bermudas floridas e tênis brancos.
Haja globalização!
Em certa altura da viagem, porém, observando as favelas existentes nas orlas das
cidades, surge uma nota melancólica. Diz ele: “Pareceu-me que a tal civilização
européia havia chegado mais para excluir do que para incluir os nativos no
progresso científico” (p. 114).
(13 de abril/2012)
CooJornal nº 782
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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