No próximo dia 22 de outubro o
início da Guerra do Contestado (1912/1916) estará completando um século. No
correr do ano múltiplos eventos se realizaram para assinalar e discutir os
acontecimentos e outros tantos estão previstos. Creio que a ocasião justifica
algumas considerações a respeito de um movimento que, em que pese sua
gravidade, continua pouco conhecido.
Monumento ao Contestado (Irani - SC)
OS ANTECEDENTES
A região que foi palco dos acontecimentos estava impregnada de misticismo.
Como se sabe, dois foram (pelo menos) os monges de nome João Maria que
palmilharam o Planalto em pregações e previsões apocalípticas. No imaginário
popular, porém, ambos se unificam e confundem num só, como concluiu o
pesquisador Nilson Thomé e eu próprio sempre observei.
O primeiro João Maria seria italiano, surgiu em Sorocaba em 1844 e desapareceu
de circulação por volta de 1870. Seu nome era João Maria Agostini ou D’Agostini,
e ficou conhecido como João Maria de Agostinho. Perambulou pelo Rio Grande do
Sul e pelo Paraná, onde existe uma gruta na qual teria morado, nas
proximidades da cidade da Lapa, e, certamente, pelo nosso Planalto. Expulso do
Rio Grande, veio para Santa Catarina, onde permaneceu por alguns meses na Ilha
do Arvoredo. Sua permanência na ilha é tema de um conto de José Boiteux,
publicado no livro “Águas Passadas.” Pregava o uso de águas curativas, a
abstenção de carne aos sábados, uma vida de respeito e penitência, além de
plantar cruzes em 14 locais indicados, conforme a via sacra. Oswaldo Rodrigues
Cabral foi o mais minucioso investigador dessa figura itinerante, sempre
coberta pelo gorro de couro de jaguatirica e apoiado em seu cajado. Ele não se
atritava com a igreja, de cujos postulados estava próximo, mas era declarado
monarquista.
Estátua do monge João Maria (Irani - SC)
O segundo João Maria seria sírio de nascimento e tinha sotaque acastelhanado,
tendo vindo de Buenos Aires, onde tudo indica que viveu por algum tempo.
Chamava-se Anastas Marcaf e peregrinou longamente pelo Planalto entre 1890 e
1908 ou 1910. Ficou conhecido como João Maria de Jesus. Tinha alguma
semelhança física com o primeiro, também pregava o uso de águas santas e a
necessidade de erigir cruzes. Não tolerava aglomerações e nem permanecia muito
tempo no mesmo local. Teve uma relação hostil com o clero católico, fazia
batizados, tinha fama de milagroso. Afirmava que quem não sabe ler a natureza
era analfabeto de Deus. Muito peregrinou pela região e diziam os crentes que
se retirou para o Morro do Taió, onde se encontra até hoje, “encantado.” São
unânimes os estudiosos em afirmar que ele foi o responsável pelo fanatismo
religioso na região. Monarquista convicto, assumiu posição de independência em
relação ao clero católico.
Decorridos de dois a quatro anos, entra em cena o monge José Maria, aquele que
alguns consideram o “monge de guerra”, postura que outros põem em dúvida.
Nessa altura exercia com sucesso o curandeirismo no povoado do Espinilho, no
município de Campos Novos. Lá foi procurado por uma embaixada de crentes para
liderar o reduto do Irani, assim ingressando na história.
O COMBATE DO IRANI
A região planaltina vivia ao abandono, esquecida dos homens. Revelava elevado
índice de mal-estar social e descontentamento com a situação vigente. Lavrava
uma revolta surda contra os coronéis latifundiários que dominavam a região e,
por extensão, contra os padres, considerados seus aliados. Para agravar o
quadro, com o término da construção da estrada de ferro, no trecho entre Porto
União e Marcelino Ramos, cortando o Estado pelo Vale do Rio do Peixe, em 1910,
grande número de operários, os chamados “arigós”, foram dispensados. Não
bastasse isso, a Companhia Lumber (Southern Brazil Lumber & Colonization
Company), um dos braços do Sindicato de Percival Farquhar, começou a expulsar
os posseiros das terras adjacentes à ferrovia que havia recebido em pagamento
pela construção da mesma. Para tal tarefa a Lumber trouxe dos EUA uma
verdadeira milícia armada.
Toda essa gente e mais peões desempregados das fazendas, sem-terras,
agricultores e pequenos proprietários em dificuldade passou a perambular sem
destino e ocupação. Atraída por líderes carismáticos que brotaram em diversos
pontos, começaram a se reunir em aglomerações improvisadas, os chamados
redutos. Entre eles, floresceu o reduto do Irani, em local que o Estado do
Paraná considerava seu. Uniram-se, então, as condições propícias à explosão. A
revolta dos caboclos, a convicção monarquista, o fanatismo religioso, a
miséria e o caos gerado pela questão de limites entre os Estados de Santa
Catarina e do Paraná, ambos disputando o território e exercendo atos de
soberania.
Entendendo que os caboclos estavam invadindo seu território, o Paraná enviou
uma força armada para expulsá-los, comandada pelo coronel João Gualberto. Em
22 de outubro de 1912 ocorre o primeiro entrevero e nele perecem, num episódio
raro nas crônicas guerreiras, os dois chefes. Morre o coronel, retalhado a
facão pelos caboclos, e morre o monge José Maria, que teria sido baleado por
Gualberto. A morte do monge ecoou como um brado de ódio e vingança pelos
campos e matos e os caboclos intensificaram os ataques em toda a região. O
monge foi sepultado em cova rasa para facilitar sua prometida ressurreição e o
túmulo dele até hoje é bastante visitado.
Túmulo do monge José Maria (Irani - SC)
Homem de passado obscuro, chamava-se Miguel Lucena de Boaventura e proclamava
ser irmão de João Maria. Diziam que seria desertor da Força Pública do Paraná.
Tinha um aspecto feio, retaco, de andar gingado e dentes estragados, mas foi
um líder nato.
Sua morte marca o início real das hostilidades.
A LUTA SE ESPALHA
Daí em diante a guerra se estende até 1916 e os insurgentes chegam a dominar
grande território, calculado em um terço da área total do Estado no chamado
Meio-Oeste, entre 30 e 40.000km2. Conhecedores do terreno e donos de uma
coragem sobrehumana, praticavam uma guerra de guerrilhas que desnorteava as
forças legais, atacando e recuando, usando da surpresa e da audácia. Outros
redutos importantes e vários redutinhos surgiram, destacando-se os de Santa
Maria (Timbó Grande) e Taquaruçu (Fraiburgo). Invadiram a vila de Curitibanos,
reduto do coronel Albuquerque, queimaram os povoados de Calmon, inclusive a
serraria da Lumber com suas instalações, São João de Cima e São João dos
Pobres, hoje Matos Costa. Nesta última, todos os homens aptos foram
executados. Num equívoco lamentável, o capitão Matos Costa foi morto. Era um
pacifista e entendia os reclamos dos caboclos; desejava evitar a mortandade de
Canudos. Porto União esteve na iminência de ser invadida e grandes combates se
travaram nas proximidades de Canoinhas.
Os redutos eram considerados cidades santas dirigidas por líderes inspirados
pelas virgens santas. Elas tinham visões e diziam conversar com José Maria,
dele recebendo orientação que transmitiam aos chefes. Ele orientava através
delas sobre as estratégias guerreiras. Havia ainda os quadros santos, onde se
faziam procissões e rezas, e o povoado permanecia guarnecido pelos Pares de
França. O monge se tornou “encantado” e aparecia em vários lugares.
Os caboclos alimentavam a esperança da ressurreição de José Maria, que viria à
frente do exército encantado de São Sebastião para impor a suprema derrota aos
“peludos” (como chamavam os inimigos em contraposição a eles próprios, os
“pelados”). O objeto dessa crença era o São Sebastião soldado romano que
recebeu flechadas amarrado ao poste, embora às vezes pareça se confundir com o
rei de Portugal que pereceu na batalha de Alcácer-Quibir.
Acossados pelo exército e pelas forças policiais dos dois Estados, os caboclos
acabaram derrotados e seus redutos foram destruídos. A guerra, segundo dados
oficiais, deixou um saldo de 10.000 caboclos mortos, embora a população local
estime em muito mais, e 500 soldados. A região contestada guarda marcas
profundas da terrível experiência e ficou empobrecida, muito abaixo dos
padrões do restante do Estado e da região sul brasileira.
Até mesmo a aviação militar foi usada pela primeira vez mas sem sucesso. O
piloto Ricardo João Kirk caiu com seu avião e pereceu.
Marco em homenagem ao tenente-aviador Ricardo João Kirk (Porto União - SC)
MINHAS MEMÓRIAS DO CONTESTADO
Por circunstâncias da vida, nasci e cresci dentro do território do Contestado.
Por essa razão, o assunto me é familiar desde a infância, embora o povo em
geral o denominasse de Revolta dos Jagunços. Presumo que o nome Contestado foi
atribuído mais tarde por historiadores e militares e nisso foi infeliz porque
sugere uma guerra entre Santa Catarina e o Paraná que jamais aconteceu.
As referências ao assunto, mesmo nas escolas onde estudei, foram sempre raras.
Parecia existir um secreto pudor ou vergonha dos acontecimentos, considerados
atitudes de “fanáticos e bandidos”, o que causou grande prejuízo porque
numerosas fontes de informação desapareceram com o correr dos anos. As pessoas
simples do povo, no entanto, não escondiam o que sabiam e foi delas que ouvi
muitos relatos.
Como meu padrasto fosse funcionário da Companhia Lumber, em Calmon, muitas
férias de colégio passei nessa vila, então distrito de Porto União e hoje
município. A outra sede da Lumber ficava em Três Barras. Conheci o local onde
se erguia a serraria que foi incendiada, à margem direita da ferrovia, num
chapadão fronteiro à estação. O clarão provocado pelo incêndio, alumiando o
sertão em derredor, nunca foi esquecido pelas pessoas mais antigas. Ainda pude
ver peças de máquinas da indústria, importadas, calcinadas pelo fogo e que
resistiam à intempérie a que ficaram relegadas. Nas proximidades, com águas
viscosas e escuras, abria-se grande poço onde o povo comentava terem sido
encontradas ossadas de pessoas decapitadas nas terríveis degolas a facão.
Nesses meus dias de criança o poço ali permanecia, cercado por um tapume, como
testemunha muda de dias trágicos. Chamavam-no de Poço dos Jagunços e creio que
foi atulhado.
Andei, naquela época, por lugares onde ocorreram grandes combates, inclusive
aquele onde foi morto o capitão Matos Costa, cerca de três quilômetros ao
norte da estação dessa cidade, mais ou menos no ponto em que a estrada velha
cruzava sobre os trilhos, segundo antigos moradores.
Na região de Calmon e Matos Costa o povo votava ódio aos americanos da Lumber,
aí incluídos os funcionários graduados que vinham do Rio de Janeiro e de Três
Barras.
Em Campos Novos, minha terra natal, no período em que lá residi, andei
seguindo os passos de José Maria, mas o que descobri foi muito vago e as
pesquisas não pareciam ser vistas com bons olhos. É um assunto em aberto.
Marco alusivo ao acordo de limites entre Santa Catarina e Paraná, plantado na
divisa dos Estados (Porto União - União da Vitória)
NATUREZA DO CONFLITO
Segundo os historiadores, o Contestado teria sido uma guerra. Para o povo,
porém, foi uma revolta e creio que esta é a definição mais próxima da
realidade. Porque, na verdade, tanto do ponto de vista sociológico como
jurídico, esse movimento foi uma revolução com todas suas características. Ela
brotou de baixo para cima, de forma espontânea e resultou de profundo
mal-estar social e das dificuldades econômicas enfrentadas pelo povo menos
favorecido. Visavam seus participantes substituir a ordem vigente, de forma
violenta, por outra mais justa na qual pudessem viver à sua maneira. “A origem
e a causa das revoluções – escreve o Prof. Paulo Bonavides – se prenderia a
uma lenta acumulação de descontentamentos e impugnações da ordem de valores
implantados ou impostos até a chegada de um momento crítico de deteriorização
final. Os golpes de Estado podem ser improvisados, as revoluções jamais.” E
mais adiante: “A crise política que produz as revoluções leva por conseguinte
ao paroxismo a contradição entre o ‘poder de cima’, minoritário, e o ‘poder de
baixo’, majoritário” (“Ciência Política”, Forense, 4ª. ed., 1978, pág. 503).
Como ensina o renomado mestre, revoluções em países subdesenvolvidos
constituem manifestação do desejo de mudança e de progresso. São um tranco, um
abalo que sacode estruturas que necessitam de renovação. E assim, sem querer e
sem saber, os caboclos do Contestado fizeram uma revolução, talvez arcaica,
sem ideologia ou programa pragmático, mas que ficou na história como o maior
levante popular do país. Foram precursores das grandes revoluções da primeira
metade do século passado, entre elas a de 1930.
Araucária, objeto de intensa cobiça (Foto: Fernando Tokarski)
HISTÓRIA E LITERATURA
Nos dias atuais é grande o interesse pelo estudo do Contestado, o que tem
gerado uma vasta bibliografia, em sua maioria na área histórica. Na ficção e
na poesia não são muitos os trabalhos publicados.
Entre os pioneiros, merecem citação Oswaldo Rodrigues Cabral e seu volumoso
ensaio “João Maria.” Não se pode esquecer “Geração do Deserto”, de Guido
Wilmar Sassi, o primeiro a encarar os fatos como um movimento e uma visão
global. É um romance histórico. Foi vertido para o cinema por Sylvio Back com
o título de “A Guerra dos Pelados.” No gênero histórico, é relevante o livro
“Planaltos de frio e lama”, de Demerval de Oliveira, minucioso e metódico.
Entre os mais recentes, registre-se “Lideranças do Contestado”, de Paulo
Pinheiro Machado, e “Contestado – A guerra dos equívocos”, de Walmor Santos,
este também romance. Por fim, não se podem omitir os vários livros de Nilson
Thomé e suas incansáveis pesquisas.
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Guido Wilmar Sassi, um pioneiro |
Nilson Thomé, incansável pesquisador |
CONSEQUÊNCIAS E LIÇÕES
O Contestado marcou fundo a região onde se deram os mais violentos conflitos.
Apesar de tudo, porém, o abandono continuou e os investimentos públicos foram
e continuam sendo escassos. A estrada ligando Caçador a Porto União, passando
por Calmon, Matos Costa e São Miguel da Serra, vital para a economia, só foi
asfaltada há poucos anos e já apresenta sérios problemas de manutenção. A
Lumber, associadas e sucessoras cortaram uma quantidade imensa de araucárias e
madeiras de lei, nada deixando em troca. Nem uma obra pública, um melhoramento
urbano, uma escola, um hospital. Até a estrada de ferro, causadora de tantas
tragédias, foi desativada e está entregue à intempérie e ao vandalismo. Nada
restou. Analisando índices comparativos, afirma-se que a região é hoje um
Nordeste dentro da região Sul. Não obstante, os moradores lutam com bravura na
esperança de dias melhores.
Segundo os historiadores, a história é estudada para evitar os erros do
passado. Se a história só se repete como farsa, os erros podem se repetir
indefinidamente. Nas regiões por onde tenho andado não me parece que o
Contestado tenha servido de lição. Vejo com apreensão que o latifúndio se
ampliou em detrimento das pequenas propriedades, engolindo-as, e que a região
é manipulada por poucos e grandes grupos empresariais.
B. Camboriú, 14 de
fevereiro de 2012.
(30 de março/2012)
CooJornal nº 780
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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