Enéas Athanázio
MERECIDO RESGATE
|
|
Em boa hora o advogado e professor Nelson Câmara, depois de
intensa e meticulosa pesquisa, deu a público o interessante livro “O Advogado
dos Escravos – Luiz Gama” (Editora Lettera.doc – S. Paulo – 2010) em que resgata
a figura de um dos mais importantes abolicionistas de nossa história. Trata-se
de um ensaio biográfico e analítico da obra de Luiz Gonzaga Pinto da Gama
(1830/1882) que dedicou toda a vida à defesa dos escravos e de outros infelizes
que lutavam pela liberdade. Amparando-se em escassa legislação e nos princípios
gerais do Direito, batalhou sem cansaço e com invulgar coragem, sem objetivos
pecuniários, pela libertação dos cativos, afrontando o poderio dos senhores e
riscos de toda espécie.
Filho de uma escrava revolucionária, Luiza Mahin, envolvida em movimentos
libertários na Bahia e no Rio de Janeiro, Luiz Gama nasceu em Salvador. Aos dez
anos de idade foi vendido como escravo pelo próprio pai, cujo nome jamais
declinava, e trazido para São Paulo. Com grande esforço acabou obtendo a
alforria e tentou cursar a Faculdade de Direito, de onde foi expulso pelos
estudantes, ofendidos pela presença de um negro nos bancos acadêmicos. Mas não
se deixou abater, entregou-se aos estudos e amealhou notável cultura jurídica e
humanística. Como advogado provisionado, deu início a uma luta sem trégua contra
a escravidão, desenvolvida no foro, no jornalismo, nos embates políticos e na
maçonaria. Formou ao lado de outros jovens abolicionistas que comungavam do
mesmo ideal, como Rui Barbosa, Castro Alves, Joaquim Nabuco e Raul Pompeia. Foi
o único a permanecer na Pauliceia, onde implantou sua fortaleza na modesta
residência onde vivia e dali sustentou uma luta que perdurou pela vida inteira.
Manejou com extraordinária habilidade os textos legais então vigentes, muitos
deles contraditórios e tendenciosos, quase sempre descumpridos pelos senhores de
escravos, obtendo admiráveis resultados.
Fez do hábeas corpus remédio eficaz na defesa dos escravos presos ilegal ou
injustamente e dos que permaneciam escravizados mesmo depois de libertados por
força de lei. E nisso teve que superar os óbices existentes nos textos
legislativos. Segundo estes, o hábeas corpus só poderia ser concedido a cidadãos
e não se estendia ao escravo, considerado uma coisa (res) ou simples peça. No
entanto, sustentava um jurista da época, Deus não fez distinção entre os homens
e, portanto, o hábeas corpus deveria proteger tanto homens livres como cativos.
E assim, através de inteligentes construções doutrinárias, o advogado dos
escravos obtinha nos juízos e tribunais a libertação de incontáveis infelizes.
Além disso, defendia-os nos processos criminais, inclusive no júri, arquitetando
teses que sacudiam o foro e alarmavam os empedernidos escravagistas. Dizia
mesmo, em alto e bom som, que todo escravo que matava seu senhor, em qualquer
circunstância, estava agindo em legítima defesa. Posições assim arrojadas lhe
valeram processos em que exerceu com êxito sua própria defesa. Em artigos de
jornal, não poupava os magistrados tolerantes ou tendenciosos que resistiam à
exata aplicação da lei. E nessa luta incansável consumiu a existência, falecendo
seis anos antes da Abolição, sem que visse raiar o sol da liberdade para todos
os negros seus irmãos.
Baseado em exaustiva pesquisa, o livro aborda todas as facetas de Luiz Gama,
focalizando a odisséia do garoto vendido como escravo, sua formação e sua vida
como homem livre, a obra poética, a longa atividade jornalística, a batalha
árdua como defensor dos escravos, a morte e as incontáveis homenagens póstumas.
Reproduz diversas medidas patrocinadas pelo advogado, resgatadas de velhos
arquivos, transcrevendo as petições e demais peças. É rico em documentos, fotos,
bicos-de-pena e vasta bibliografia. Trata-se, enfim, de uma obra que constitui,
ao mesmo tempo, revelação para novos e velhos leitores e belíssima homenagem a
quem tanto a mereceu.
(Editora Lettera.doc – Rua 7 de Abril, 2 3 5 -
Conj. 3 0 4 –
CEP 01043-000 – S. Paulo)
(09 de setembro/2011)
CooJornal no 752