Enéas Athanázio
RECEITA DE BEM VIVER
|
|
Graças à gentileza do amigo Trajano Pereira da Silva, recebi
um livro que é verdadeira raridade (*). Trata-se do penúltimo volume que integra
a coleção das memórias de Gilberto Amado, considerado dos maiores memorialistas
brasileiros de todos os tempos, só igualado por Humberto de Campos e Pedro Nava.
Nesse volume há o capítulo denominado Maturidade que constitui verdadeiro guia
ou receita de bem viver. Escrito quando o autor atingia o apogeu de sua
capacidade intelectual, depois de superados os graves problemas com que se
deparou, ele medita sobre o passado e sobre a maneira como fruir a vida com
tranquilidade e paz de espírito. Gilberto Amado amou a vida como poucos e em sua
longa existência sempre soube aproveitar tudo de bom que ela lhe concedia. O
segredo, dizia ele, é rechear o minuto, nunca permitindo que o tempo o esvazie.
Tinha o chamado sentimento lúdico da vida. Muitas de suas reflexões sobre esse
tema estão no capítulo referido.
Em primeiro lugar – escreveu ele – “cabeça e coração devem se entender bem. Nada
de contradições separando-nos ou quebrando-nos em pedaços soltos. Nenhum
complexo ou recalque.” Desde muito cedo, continua, “preparava-me para suportar a
dor, amenizá-la quanto possível, não dramatizar o acontecido, encadear o
inesperado na corrente do cotidiano.” A dramatização dos fatos, em especial dos
negativos, parece ser uma constante no ser humano. E com isso o mal acontecido
se avulta, ganha dimensões dramáticas, muitas vezes acima da gravidade real.
“Minha primeira obrigação a meu respeito – declarou – era não deixar o
sofrimento me subjugar. Para isso penso que muito me serviu o estudo, o exame
das causas das coisas, a boa literatura que explica sem explicar, mostrando só.”
Mais adiante, explica como enfrentar com equilíbrio o ruim e o bom de cada dia.
“Naturalmente cada hora me trazia uma pena, cada dia o seu aborrecimento. Se
viver não é fácil, conviver é o diabo. Mas quem pensa que o seu mal é único,
engrandece-se por falta de imaginação. Seu mal é de muitos. Não há sofrimento
inédito, nem original. Quase tudo é plágio, réplica, reprodução, imitação.” Os
remédios para enfrentar o negativo são simples e práticos. Diz o escritor: “Uma
manhã de praia me forra para o dia todo contra o que vier de desagradável
depois. É preciso não esquecer, na hora do aborrecimento, o prazer fruído
momentos antes, guardá-lo bem no paladar para que a boca possa receber sem
engulho o mau bocado que há de vir.” Mais além, outra observação interessante:
“Não sou dos que levam jornal ou livro para ler deitado na areia. Considero isso
um absurdo. A praia é do corpo e daquela parte do espírito que ajuda o corpo a
aproveitar a praia.” Gilberto foi praiano convicto e exímio nadador.
O homem moderno, sempre atarefado, não contempla mais a natureza. Ele, porém, se
conservou fiel “ao namoro habitual com as coisas amanhecentes” e de sua janela
contemplava o espetáculo que é o nascer de cada novo dia. Depois de várias
observações a respeito da invasão das praias pelas multidões, do telefone, “esse
estuprador do silêncio”, e da barulheira infernal dos tempos modernos, conclui:
“O homem de quem Deus gosta é o de carne e osso, tanto que não lhe ressuscita
apenas a razão mas o corpo todo. Prazer usufruído nos ajuda a compensar com a
lembrança dele o desprazer superveniente.”
_________________________________
(*) “Presença da Política”, Rio de Janeiro, Livraria José
Olympio Editora, 1ª. Edição, 1958, págs. 303 a 314.
(26 de agosto/2011)
CooJornal no 750