Enéas Athanázio
SIMPÁTICO
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“Não tenho medo da morte
Porque sei que hei de morrer.
Tenho medo da saudade
Que mata sem Deus querer.”
Rosilho, que alguns chamavam Simpático, já era um cavalo velho. Idade
impossível de fixar, mesmo com acurado exame dos dentes por bom
entendedor. Ventrudo, tinha imenso facão no lombo e andadura, misto de
marcha e trote, pouco encontradiça. Resfolegava com violência em qualquer
subidinha, mas, muito dócil e calmo, jamais protestando contra tratamento
duro e suportando com paciência meus caprichos infantis.
Comprado por minha família, prestara toda sorte de serviço. Quando novo,
como animal de montaria; mais tarde, transportando cargueiros de milho.
Com grande pesar eu o via metido em cangalhas, a levar pesadas cargas.
Depois, velho para o trabalho, foi largado ao deus-dará. Linhagem
desconhecida, sabia-se, de vagas informações, que era filho de uma égua
cega.
Grande ferimento no lombo, ausência de cuidados e curativos necessários
permitiram que aquilo progredisse, tornando-se crônico, elevando-se em
autêntico vulcão. A dor continuada incutiu-lhe o tique de sacolejar a
pele, em movimento incessante e instintivo, onde a ferida pegajosa atraía
as moscas. Eis que por lá apareceu, um dia, um veterinário metido numa
dessas campanhas do governo. Rosilho foi operado e em pouco estava apto
para retornar à labuta.
Como trabalhou, o pobre!
Apareceu, uma vez, cheio de piolhos. Feliz por encontrá-lo, encostei-lhe
por descuido a cabeça, adquirindo grande parte da sua enorme criação. Tal
a comichão que me causaram os bichinhos, a correr pela minha cabeça, que
fiquei desesperado. Minha avó, conhecedora dessas coisas, diagnosticou
logo o meu mal. Tive que lavar a cabeça em água de querosene e passei a
dormir em cama separada para não espalhar a praga. Mas senti a separação
do idoso animal até que ele fosse lavado com inseticida e livrado dos
inquilinos indesejáveis.
Nas férias da escola eu adquiria, com recursos provindos de minha mãe, um
fardo de alfafa e um bom saco de milho, dispensando-lhe trato especial.
Passava-lhe a raspadeira todos os dias, alisando-lhe o pelo, e mandava
aparar-lhe a crina e os cascos. Nele montado, percorria as vizinhanças do
lugarejo, embora ele fosse lerdo e sua andadura nada confortável.
Retribuindo, ele oferecia a mansidão de sempre, dando mesmo mostras de me
conhecer. Tudo aceitava, resignado e silencioso. Nunca o vi escoicear,
morder ou passarinhar. Creio que não sabia fazê-lo. Os enormes olhos
aquosos tinham reflexos que eu julgava quase humanos; externavam alegria,
ternura e, às vezes, um laivo e ironia.
Uma só vez me desapontou, e isso graças à minha juvenil inexperiência.
Hoje, tantos anos decorridos, confesso que a razão estava com ele. Havia
por lá uma desusada “aranha”, de complicadíssimo arreame. Com muita
paciência e tempo, atrelei-o ao tal veículo. Depois da trabalheira, subi à
boléia e quis fazê-lo puxar. Simpático, sempre calmo, sem rebeldias
aparentes, recusou-se a sair do lugar. Baldados os meus esforços, depois
de muita lida, tive que desistir. Foi a única vez em que o vi impor sua
vontade. Nunca havia puxado charretes ou carroças. Nem mesmo idoso como
era, aceitou a tarefa humilhante.
Anos mais tarde, já mocinho e passado o interesse pelas andanças, eu
costumava visitar um amigo, morador em viloca distante alguns quilômetros.
Trocávamos livros e revistas e para lá seguia, sempre a pé. Algumas vezes,
tão logo saía dos limites do meu povoado, deparava com o Rosilho pastando
à margem da estradinha. Aproximava-me e, sem corda ou pelego, montava-o e
punha-o na estrada. O pacato animal, pachorrento e bufante, seguia pelo
caminho tortuoso, levando-me ao destino. No limiar da vila do meu amigo eu
soltava o cavalo, dava-lhe um amistoso tapa no lombo e ele por ali ficava
à vontade, pastando. À tardinha, de retorno, encontrava-o quase no mesmo
local. Parecia até que me esperava. Montava-o novamente e assim tornava à
casa, cantando pelo caminho deserto, a voz reboando nas coxilhas
silenciosas.
O tempo correu. Simpático ficou entregue à própria sorte; não tinha mais
serventia. Mudamo-nos para a cidade e nunca mais o vi. Soube que fora
encontrado morto, caído numa sanga. Não sei explicar o que senti, mas a
notícia me feriu. Depois de tantos serviços não teve uma sepultura e
acabou devorado por famintos urubus.
Mais de vinte anos são passados, mas não o esqueci. Com a maior ternura
recordo o velho animal, arrependendo-me de mais não ter feito por ele.
Naquela época eu não sabia que junto com ele estava vivendo a mais bela
fase de minha vida. Ele, no entanto, mais experiente, parecia saber disso.
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Transcrito do livro O AZUL DA MONTANHA, S. Paulo, Editora do Escritor,
1976, págs. 49/53.
(15 de julho/2011)
CooJornal no 744