Enéas Athanázio
O SUPLÍCIO DA FEIÚRA
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Embora pedindo perdão às feias, Vinicius de Moraes dizia que a beleza é
fundamental. Ainda que eu acredite que a feiúra relativa seja tolerável,
quando chega ao extremo ela parece provocar mal estar à própria pessoa e
àquelas que a cercam. Estas ideias me ocorrem após a leitura de “Uma
enteada da natureza”, conto de Gertrud Gross-Hering, escrito em alemão,
publicado em volume em coedição Edufsc/Cultura em Movimento, com tradução,
pesquisa, introdução, bibliografia e notas de Lia Carmen Puff (2000). A
publicação visava divulgar a literatura brasileira em língua germânica
produzida em nosso Estado.
Publicado pela primeira vez em São Paulo, em jornal de língua germânica, o
conto relata a mudança de uma família alemã para Blumenau, trazendo em sua
companhia a criada Kathrin, pessoa de rara fealdade e que disso tinha
aguda consciência. A autora a descreve sem meias palavras, dizendo: “O que
se lhe apresentava era uma visão terrível: cabelos parcos, vermelhos, cor
de fogo, em fiapos arrepiados em torno de uma cabeça feia e de formato
muito grande, da qual as orelhas se sobressaíam como duas colheres. Um
rosto sardento, largo, chato, e com os olhos mirolhos, uma boca grande,
como se fosse uma fenda, e o mais feio: um nariz tão achatado, que se
poderia duvidar de sua existência...” (pp. 50/51). Não bastasse isso, “a
saia curta e surrada deixava à mostra grandes remendos coloridos, os pés
nus estavam enfiados em grandes tamancos” (p. 49). Tomada de compaixão,
mesmo contrariando os filhos, a patroa concorda em trazê-la e a criada se
compromete a não se intrometer com a família durante a viagem. Com efeito,
em toda a longa travessia de navio se mantém isolada num canto, escondida,
sem falar com ninguém, exceto com um marinheiro que ruma para a Argentina.
Entre os dois a autora anota apenas um ligeiro toque, embora mais tarde se
saiba que mantiveram relações, tanto que a pobre Kathrin dá à luz uma
filha, já no Brasil. Essa relação mais íntima, no entanto, nem sequer é
sugerida, não havendo qualquer colorido de transição narrativa. Com o
surpreendente nascimento da criança, vem à tona o imenso temor da mãe de
que ela se parecesse com ela na extrema feiúra. Ao que tudo indica, porém,
e para geral alívio, a menina puxara ao pai.
O conto é bem escrito, em linguagem suave e clara, ainda que sejam
abundantes os advérbios em mente, encontrados em quantidade em todas as
páginas, empobrecendo o texto. Como anotou García Márquez, esse é “um
vício empobrecedor da linguagem” e que precisa ser evitado. Não posso
afirmar que o cacoete esteja no texto original ou se provém da tradução,
mas ele também está presente nas notas explicativas redigidas pela
tradutora. O volume foi enriquecido com informações biográficas da autora,
as obras editadas, notas sobre a realidade social, cultural e histórica da
região na época, as análises críticas a que foi submetida a obra da
autora, os bastidores da tradução, com suas técnicas e dificuldades, e a
bibliografia. O livro surgiu como resultado de uma dissertação de mestrado
apresentada pela tradutora em 1995 e “buscava chamar a atenção do público
sobre as obras dessa escritora, já que sua produção literária se encontra
praticamente desconhecida” – conforme as palavras da tradutora (p. 9).
Objetivo louvável, retirando do ostracismo uma autora de obra bastante
volumosa através deste livro que é um documento imperecível de parte do
que se produziu em língua alemã na literatura de nosso Estado.
(Editora Cultura em Movimento – Caixa Postal 4 2 5 – BLUMENAU – SC).
PS – O livro em comento me foi oferecido pelo caro amigo Desembargador
Orli Ataíde Rodrigues, a quem agradeço.
(08 de julho/2011)
CooJornal no 743