Enéas Athanázio
SALVO PELA OBRA |
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Enquanto o meio cultural brasileiro vai devagar, quase parando, numa
pasmaceira como nunca vi, e nada, ou quase nada, digno de registro acontece,
o restante deste mundo velho se movimenta. Na França, por exemplo, lavra
enorme polêmica na área literária, fato inusitado por aqui, onde as
polêmicas ficam restritas ao reino da política e nunca em torno de
princípios ou ideias. É que os integrantes do meio cultural se opuseram aos
festejos programados para comemorar os 50 anos da morte do escritor
Louis-Ferdinand Céline (1894/1961) e o governo capitulou, cancelando as
comemorações. Embora considerado um dos maiores romancistas de todo o mundo
e o segundo da França, superado apenas por Marcel Proust, Céline manchou o
próprio nome ao abraçar um antissemitismo radical, manifestado em violentos
opúsculos publicados e manifestações, sendo também considerado nazista de
carteirinha e colaborador do governo fantoche de Pétain e Laval durante a
ocupação alemã do território francês. No final da II Guerra Mundial fugiu
para a Alemanha, por onde muito perambulou, e depois foi preso na Dinamarca
(ou na Holanda), onde cumpriu um ano de prisão, enquanto era condenado à
revelia na própria França. É bem provável que sua fuga o tenha salvo do
fuzilamento por traição e só anos mais tarde teve permissão para retornar à
pátria (1951). Essas posições por ele assumidas geraram grande repulsa em
todo o mundo, ainda que se reconheça o valor inigualável de sua obra, em
especial dos romances “Viagem ao fim da noite”, “Morte a crédito” e “De
castelo em castelo” que renovaram o gênero romanesco em vários aspectos. A
repulsa contra o homem não se estendeu à obra. Como afirmou um crítico, “A
reputação dos romances sobreviveu à desonra de seu autor.”
Também na
França, um magro panfleto de apenas 32 páginas sacode o meio intelectual e
já vendeu mais de 1,3 milhões de exemplares. Trata-se de “Indignai-vos!”, de
autoria do embaixador, escritor e professor Stéphane Hessel, de 93 anos de
idade. Nele o autor apela aos leitores para que não se calem, não abaixem as
cabeças, mas se rebelem e se encham de indignação contra o capitalismo
financeiro, as restrições das conquistas sociais e o esquecimento do legado
de maio de 1968. Defende com veemência os sem-tetos, os imigrantes ilegais e
a causa palestina porque, afinal, o sol nasceu para todos. Não se conforma
com a redução das aposentadorias, considerando-a injustificável em face do
aumento da riqueza nacional. Hessel integrou a equipe de redatores da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, ao lado do brasileiro
Oswaldo Aranha. Seu panfleto superou todas as fronteiras europeias e se
transformou num fenômeno editorial. Apontado como o embaixador da
indignação, foi um herói da Resistência, sendo filho do casal que inspirou o
romance e o filme “Jules et Jim.”Ainda sem tradução brasileira, o pequeno
livro já provoca manifestações entre nós e talvez sirva de incentivo para
que os brasileiros recuperem sua capacidade de indignação. A esperança é a
última que morre.
Na Suíça, noticiam os jornais, quatro caixas
contendo cartas, diários e talvez até romances inacabados de Franz Kafka
(1883/1924) foram abertas na cidade de Zurique. Os documentos nelas contidos
estão “sub judice” e existe intensa curiosidade a respeito do que eles
possam conter, inclusive elementos que permitam redirecionar as pesquisas e
interpretações a respeito da vida/obra do célebre criador de Gregor Samsa.
Mas o conteúdo só será revelado ao público após a solução da controvérsia
judicial, o que é deveras lamentável.
Enquanto isso, aqui entre nós
ocorrem situações tão surreais que surpreenderiam o próprio Kafka. Pois o
ex-jogador Romário, eleito deputado federal por larga margem de votos, fez
gazeta logo na primeira sessão da Câmara. Assinou o ponto, tomou um avião e
foi jogar nas areias de uma praia carioca. Depois ainda se queixou de que,
sendo quem é, será muito vigiado pela imprensa. Incrível mas verdadeiro.
Tenho estranhado as manifestações de contentamento de alguns
parlamentares porque conseguem unanimidade para isto e aquilo. Ora, a
democracia se nutre da eleição, do debate, da disputa pelo voto. Arranjos de
gabinete, alianças disto e daquilo, coligações esdrúxulas nada têm de
democrático, ainda mais quando afastam das urnas os eleitores, mesmo sendo
os próprios pares. A eleição é a própria alma da democracia.
Passando
por um dos imensos campos de concentração, ops!, tapumes, que se reproduzem
como coelhos na cidade, tentei ver o que havia lá dentro. Não foi fácil
perscrutar através do paredão opaco, hermético, impenetrável, até que
encontrei uma pequena fresta. Fiquei impressionado com a quantidade de mata
que foi cercada. Será possível que irão permitir a derrubada daquilo tudo?
RT, 14/05/2011 Ano 14 - Número 735
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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