07/05/2011
Ano 14 - Número 734
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
UM SENHOR BRASILEIRO
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Terminei de ler “Clóvis Beviláqua, um senhor brasileiro”, organizado por
Cássio Orbez Schubsky, contando com vários colaboradores, publicado pela
Editora Lettera.doc (S. Paulo – 2010). É um livro muito bonito, com
sofisticada apresentação gráfica e numerosas ilustrações, documentos e
fotos. Faz uma súmula biográfica do jurista e aborda as várias facetas de
sua obra como civilista, internacionalista, criminalista,
constitucionalista, filósofo, historiador, ativista cultural e literato
(que eu preferiria dizer escritor). Em virtude de tão grande abrangência o
livro se tornou um tanto superficial e o leitor nem sempre consegue captar
com clareza o pensamento do biografado, embora não reste dúvida de que foi
um liberal e democrata. O volume contém ainda as homenagens prestadas ao
jurista, seu relacionamento com a esposa, Amélia de Freitas Beviláqua, e a
família, suas qualidades de oráculo, segundo San Tiago Dantas, e o legado
resultante de toda uma existência de estudo e trabalho. O livro se fecha
com depoimentos de várias personalidades a respeito do biografado, como
Paulo Bonavides, César Asfor Rocha, Moreira Alves, Arruda Alvim e muitos
outros. Rachel de Queiroz, em síntese feliz, diz o seguinte: “Este velho
de olhos quase cegos de ler, humilde de coração, mas cultor fanático dessa
abstração poderosa que é a lei, ao fim de contas resulta muito mais
importante e precioso para o patrimônio de sua terra de que todos esses
valentões e leguleios... Festejemos Clóvis, reeditemos a sua obra,
premiemos seus biógrafos e seus comentadores, e, da inhumação de suas
cinzas na cripta do Fórum Clóvis Beviláqua em Fortaleza, façamos uma festa
cívica que impressione os moços” (p. 156). Trata-se, enfim, de uma bela
homenagem ao autor do Código Civil de 1916 que, por quase noventa anos
regeu a vida de milhões de brasileiros, desde o nascimento até a partilha
de seu patrimônio. Clóvis andava ausente das livrarias, mesmo porque é
ingrata a função dos autores de leis que, uma vez revogadas, caem no
esquecimento, como também suas obras. É interessante lembrar que, depois
de várias tentativas de outros juristas, Clóvis redigiu o projeto de
Código Civil em pouco mais de seis meses, tarefa extremamente difícil de
realizar quando toda a legislação estava esparsa em incontáveis diplomas
legais.
Durante vinte e oito anos exerceu o cargo de consultor jurídico do
Itamaraty. Nesse período produziu incontáveis pareceres sobre os mais
variados temas do Direito Internacional, fornecendo sempre uma orientação
segura à diplomacia nacional. Destaca-se nessa área o projeto de criação
da Corte Permanente de Justiça Internacional, redigido a pedido da Liga
das Nações, precursora da ONU. Esse trabalho foi publicado em francês. Foi
sucedido no cargo, com sua aposentadoria, pelo jurista e escritor Gilberto
Amado.
No plano familiar, Clóvis foi um homem simples e despido de ambições.
Morreu pobre e quase nada legou em bens materiais. É conhecida sua
profunda ligação com a esposa, Amélia de Freitas Beviláqua, por quem
rompeu com a Academia Brasileira de Letras, da qual fôra um dos
fundadores. Ela havia se candidatado a uma vaga e foi recusada porque a
ABL não admitia mulheres em seu quadro. Solidário, o marido desligou-se
para sempre da instituição, renunciando à imortalidade. Também é
relembrado seu amor pelos pássaros, gatos e cães, existindo a respeito
extenso anedotário, às vezes exagerado pela imaginação das pessoas.
Muitos têm sido os biógrafos de Clóvis, destacando-se entre eles Sílvio
Meira com a obra “Clóvis Beviláqua. Sua vida. Sua obra.” Tive a honra de
ser amigo do autor e estou entre as pessoas a quem ele dedicou o livro.
Freitas Nobre, César Asfor Rocha, San Tiago Dantas, Celso Lafer, Alcântara
Nogueira, Paes Barreto, Melchiades Picanço e diversos outros autores
reconstituíram, no todo ou em parte, a existência do jurisconsulto nascido
em Viçosa do Ceará.
Não poderia encerrar este comentário sem uma palavra sobre o “caso” Olga.
Segundo Fernando Morais, biógrafo de Olga Benário Prestes, esposa de Luís
Carlos Prestes, Clóvis teria se manifestado a favor da expulsão dela do
Brasil, mesmo estando grávida, sabendo que a entrega da mulher aos
nazistas seria sua morte certa, como de fato aconteceu. Afirma ainda que o
jurista fez declarações à imprensa endossando a decisão do governo de
expulsá-la, usando para tanto de uma linguagem ambígua para esconder o
verdadeiro pensamento. Os autores deste livro negam de forma peremptória a
acusação, alegando que na época Clóvis não exercia mais a função de
consultor jurídico do Itamaraty, cargo de que estava aposentado. Mas a
negativa, além desse argumento, não conseguiu comprovar que as afirmações
de Clóvis não tivessem sido feitas, mesmo em caráter particular. Fernando
Morais não reconsiderou as afirmações, talvez porque ainda não tenha
havido tempo, e a dúvida permanece como uma nódoa que precisa ser, a todo
custo, bem esclarecida.
Este artigo nem havia sido publicado quando sobreveio o falecimento de
Cássio Orbez Schubsky (1965/2011), no dia 8 de fevereiro, aos 45 anos de
idade, vítima de um enfarte. Foi uma perda lamentável. Além de organizador
deste livro, ele unia a História e o Direito, publicando e planejando
trabalhos numa área em que é muito pobre nossa bibliografia.
(07 de maio/2011)
CooJornal no 734
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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