
26/03/2011
Ano 14 - Número 728

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio
STEFAN ZWEIG (2)
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Como dizia meu saudoso amigo Joaquim Inojosa, ler memórias e biografias é
aprender com a experiência alheia. Daí talvez a razão pela qual esses
gêneros literários, em outros tempos tão desvalorizados, têm hoje enorme
número de leitores aficionados, entre os quais me incluo. Alguns
escritores brasileiros foram extraordinários memorialistas e se
notabilizaram no gênero, como foram os casos de Humberto de Campos,
Gilberto Amado e Pedro Nava. Biógrafos de talento foram e são numerosos;
nossa literatura é rica no gênero.
Essas observações me ocorreram ao concluir a leitura das memórias do
escritor austríaco Stefan Zweig (1881/1942), que foi objeto de meu
comentário anterior nesta mesma coluna. “O mundo que eu vi”, publicado
entre nós pela Editora Record, em tradução de Lya Luft (1999) reúne as
lembranças de um apaixonado pacifista que, não obstante, sofreu os efeitos
das duas guerras mundiais, em especial da segunda, cujas consequências
pessoais foram catastróficas, gerando nele a profunda depressão que acabou
por levá-lo ao suicídio aqui no Brasil, em Petrópolis, onde está
sepultado. Judeu de família bem sucedida, teve uma infância feliz, estudou
nos melhores colégios e universidades, doutorando-se em Berlim. Poeta,
ficcionista, ensaísta, dramaturgo, biógrafo e articulista, tornou-se um
dos mais populares escritores europeus no período entre guerras e o mais
traduzido de então nos mais variados e exóticos idiomas. Em paralelo, foi
dedicado colecionador de autógrafos e originais, formando valioso acervo.
Com a chegada de Hitler ao poder, no entanto, suas antenas sempre ligadas
captaram os sinais da prepotência e do obscurantismo que viriam em breve e
que a Europa parecia ignorar ou tolerar. Começaram aos poucos e depois com
crescente intensidade as limitações de direitos e perseguições aos judeus,
até que tudo lhes foi tirado, inclusive a vida. Homem sensível e de gosto
refinado, apolítico e pacifista por convicção, foi calando no fundo da
alma cada golpe sofrido pela sua raça. Prisões arbitrárias,
interrogatórios na calada da noite, torturas, invasão de residências,
confisco de propriedades e dinheiro se tornaram comuns. Até os amigos mais
chegados o evitavam, sentindo-se ameaçados. Não tardou a ser forçado a
abandonar sua casa em Salzburgo, com seus livros, quadros, obras de arte,
coleção de autógrafos e tudo mais para refugiar-se em Londres. Num passe
de mágica, de cidadão em pleno uso dos seus direitos, passou a ser um
emigrado, um desterrado, um pária, um sem-pátria vivendo de favor em chão
alheio, uma vez que até o passaporte lhe foi confiscado. Depois, na
sequência, começa a perambular pelos países como um ente perdido no mundo,
sem ter para onde voltar, rejeitado por muitos governos temerosos das
retaliações hitleristas quando os nazistas pareciam prestes a dominar o
mundo. E então chega ao Brasil, onde foi bem recebido, e continuou a
produzir, escrevendo inclusive seu célebre “Brasil, país do futuro.” Mas
as sombras e os temores não o abandonaram e a eles não conseguiu resistir.
Evadindo-se de Viena, lá deixou a mãe idosa, com mais de oitenta anos.
Ficou mortificado ao saber que ela, nas pequenas caminhadas pela
redondeza, fora proibida de sentar-se nos bancos da praça, interditados
aos judeus. Nos descansos dos curtos passeios, tinha que sentar-se no
chão. E quanto a ele próprio, viu seus livros retirados das livrarias,
queimados nas ruas em renovados autos-de-fé medievais, e proibidos de
serem reeditados. Óperas cujos libretos havia escrito e peças teatrais de
sua autoria foram interditadas. Fechava-se sobre ele um círculo de ferro
que o estrangulava, retirando-lhe até mesmo a identidade. Como também
acontecia com milhões de outros, pelo “crime” de serem judeus, entre os
quais Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, expatriado em Londres, com quem
muito conviveu em seus últimos anos de vida. Nem os mortos foram poupados,
até eles foram discriminados e suas estátuas retiradas dos pedestais.
“Por três vezes derrubaram minha casa e existência – escreveu ele, -
apartaram-me de tudo que existira e passara, e com uma veemência dramática
lançaram-me no vazio, no conhecido “não sei para onde ir...” Perder a
própria pátria, concluiu, não é apenas sentir sob os pés a ausência do
chão natal.
Eis um livro que deveria ser lido por todos que suspiram saudosos da
ditadura e que, em vez de aprimorá-la, votam nos Tiriricas da vida para
desmoralizar nossa democracia.
(26 de março/2011)
CooJornal no 728
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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