12/03/2011
Ano 14 - Número 726
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
O SOBREVIVENTE
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Depois de permanecer inédito por mais de sessenta anos, o manuscrito veio
a público e o livro desde logo se tornou um dos grandes textos da
literatura sobre a II Guerra Mundial. Ao contrário de muitos outros, que
foram escritos a posteriori, após os fatos narrados, como páginas de
memórias, este foi composto na época contemporânea dos acontecimentos, ao
calor dos fatos, quando tudo ainda estava verde e seu impacto repercutia
na sensibilidade do narrador. Estou me referindo ao livro “Eu sou o último
judeu”, de autoria de Chil Rajchman, publicado pela Editora Zahar, neste
ano de 2010. Ele contém o relato direto e cru, sem adornos literários, dos
terríveis dias vividos pelo seu autor no campo de extermínio de Trenlinka,
na Polônia, entre 1942 e 1943. É difícil imaginar que alguém tivesse
suportado tantos e tais sofrimentos e ainda pudesse sobreviver sem perder
a razão. O autor e outros sobreviventes (foram 57 no total) é que eram –
estes sim – os verdadeiros super-homens! E o mais interessante é que o
relato não é carregado de ódio acumulado, mas a exposição de algo
consumado contra o que nada mais poderia ser feito e nem poderia ser
alterado. Aconteceu assim e como tal foi relatado pelo autor.
Judeu polonês, nascido em Lodz, em 1914, Chil Rajchman, depois de marchas
e contramarchas, foi conduzido ao campo de extermínio de Treblinka. Graças
à própria esperteza, aliada a boa dose de sorte, escapou das execuções
imediatas e passou a viver as mais chocantes experiências, sempre com a
aguda sensação de caminhar sobre o fio da navalha, uma vez que pelo mínimo
motivo e até mesmo graças ao mau humor de algum SS poderia ser executado
com um balaço, de preferência na cabeça, para evitar desperdício de
munição. Como integrante dos “Kommandos judeus”, cabia-lhe, no início,
transportar cadáveres desde as câmaras de gás até as valas comuns, onde
eram lançados. Depois passou ao grupo dos tonsuradores, ou sejam, aqueles
que cortavam os cabelos das mulheres, antes das execuções, e os juntavam
em caixas. Por fim, como falso dentista, foi designado para arrancar os
dentes dos mortos que estivessem obturados para aproveitar o ouro,
lavá-los e colocá-los em caixas. A água sanguinolenta da lavagem serviu
muitas vezes para aplacar a terrível sede de que padeciam milhares de
prisioneiros. Mas o pêndulo da guerra começou a virar; o exército nazista,
que parecia invencível, começou a tropeçar e a sombra da derrota passou a
perseguir o comando do campo de extermínio. Tornou-se imperioso, então,
destruir todos os indícios da mortandade em curto prazo. As valas foram
reabertas, os corpos em decomposição retirados e queimados em monumentais
fogueiras sempre aperfeiçoadas. Surgiu até quem inventasse formas para
torná-las mais eficientes, apelidado pelo humor negro reinante de “o
artista.” E assim, entre 700 e 900 mil judeus, homens, mulheres, velhos,
crianças, viraram fumaça que subiu aos céus, empestando os ares com o
cheiro nauseabundo que se espalhava pela região. “Nenhum campo de
extermínio foi tão longe na racionalização do assassinato em massa” –
escreveu um historiador. Mas sobreveio a revolta dos presos, em agosto de
1943, e Chil, por verdadeiro milagre, conseguiu fugir. Depois de vencer as
maiores dificuldades, inclusive outras prisões e fugas, conseguiu chegar a
Montevidéu, onde ainda encontrou forças para recomeçar a vida, casando-se,
e teve três filhos. Incrédulo diante da própria sobrevivência, escreveu:
“Sim, sobrevivi e sou livre, mas para quê? Para contar o assassinato de
milhões de vítimas inocentes, para dar testemunho de um sangue inocente,
derramado por assassinos. Sim, sobrevivi para dar testemunho deste grande
abatedouro: Treblinka” (p. 145).
Apesar dos frenéticos esforços para destruir os indícios, não lograram
êxito, e as provas do holocausto foram surgindo, apontando as barbaridades
cometidas. Entre as provas irrefutáveis estão os depoimentos das próprias
vítimas, entre elas a de Chil Rajchman, o sobrevivente. Fatos assim
precisam ser sempre lembrados, ainda que dolorosos, para que não se
repitam.
(12 de março/2011)
CooJornal no 726
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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