19/02/2011
Ano 14 - Número 723
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
|
Enéas Athanázio
REPETIÇÕES
|
|
Fiz certa vez um ensaio sobre a frequência com que certos assuntos
aparecem e desaparecem em nossa mídia. Fui buscar na história recente
algumas questões que foram debatidas até a exaustão e mais tarde
retornaram ao noticiário com os mesmos argumentos. Concluí na ocasião que
parecíamos destinados a andar em círculos.
No terreno literário, o assunto mais que requentado do momento é a
acusação de racismo atribuída a Monteiro Lobato, agora com base no livro
infanto-juvenil “Caçadas de Pedrinho.” Isso já aconteceu em outras
oportunidades, embora em função de outros livros do criador de nossa
literatura infantil.
Para bem verificar as coisas, reli o livro de ponta a ponta e me diverti
como há muito não acontecia. Com o pretexto de relatar as caçadas do
valente neto de Dona Benta, no Sítio do Picapau Amarelo, Lobato faz uma
sátira de certas atitudes da administração pública, daquelas que ninguém
entende porque são irracionais e ilógicas e, não obstante, vêm respaldadas
pela sovada afirmação de que o governo sabe o que faz. Tudo é descrito com
muito humor, prendendo o leitor até o fim.
Entre outras aventuras, o livro relata a imaginosa história do rinoceronte
que fugiu de um circo, no Rio de Janeiro, e, por caminhos misteriosos, foi
dar no sítio de Dona Benta, onde se fartava devorando os macios capins da
Mata dos Taquaruçus. A fuga do pachorrento animal provocou tal celeuma que
até uma revolução foi adiada e o cangaceiro Lampião cessou de agir e
tratou de colaborar na busca do fugitivo. Apesar do aspecto bravio, o
rinoceronte se acostumou com a vida do sítio e fez amizade com Emília,
informada pelos besouros de tudo que acontecia. Mas vai que um dia o
bichão resolve ir ao terreiro da casa e deitar-se atravessado na porteira,
bloqueando entradas e saídas de pessoas. Assustada, Dona Benta telegrafa
ao Rio de Janeiro, pedindo providências. O governo cria então uma
repartição pública específica para caçar o animal com um diretor e muitos
funcionários com polpudos salários. Lá aparece, pouco depois, uma equipe
encarregada de eliminar o animal, munida de canhão, metralhadora e mil
apetrechos. Mas o bicho estava refestelado na porteira e não havia como
passar. O jeito foi construir uma linha telefônica, passando sobre ele,
com os postes pintados de verde e amarelo em sinal de patriotismo. Além
disso, foi instalado um sistema de carretilhas para transportar as armas e
tudo mais para o outro lado. No dia da solene inauguração, o
“impertérrito” chefe da missão sofreu grande decepção: o rinoceronte não
compareceu para o sono da tarde atravessado na porteira! A história
termina com o bicho investindo furioso contra os caçadores e o dono do
circo enviado para local ignorado com uma super dose do pó de pirlimpimpim
aplicada pela Emília. Em todo o relato transparece o gênio criativo de
Lobato e o humor, às vezes ácido, mas tão característico.
Pois foi nessa história que o Conselho Nacional de Educação, órgão do MEC,
encontrou trechos racistas e recomendou em parecer que “o livro não seja
distribuído em escolas públicas, ou que isso seja feito com um alerta, sob
a alegação de que é racista.” O parecer tem provocado grande discussão e
ocupado as páginas dos jornais. Relendo a obra, no entanto, nada encontrei
que me pareça racista. Tia Nastácia, sempre apontada como vítima dos
supostos ataques racistas, é tratada com respeito e simpatia, em igualdade
de condições com os demais habitantes do sítio. Creio que só leitores
muito suscetíveis ou com prevenção poderão descobrir no texto intenções
racistas e, menos ainda, incitação ao “bullying”, como declarou alguém. Na
linguagem literária, rebuscando e rebuscando, muitas vezes é possível
retirar conclusões que jamais passaram pela cabeça do autor. Mas a questão
está em debate e vamos acompanhar para ver o desfecho. Esperemos que não
abra caminho para futuras censuras.
(19 de fevereiro/2011)
CooJornal no 723
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados
|
|