NOBEL DE LITERATURA
Outubro trouxe a agradável notícia de que a Academia Sueca concedeu ao
escritor peruano Mario Vargas Llosa o Prêmio Nobel de Literatura de 2010.
Nascido em Arequipa, em 1936, e autor de uma obra consagrada em todo o
mundo, Llosa segue os passos de outros latinoamericanos que também
mereceram o mesmo prêmio, entre eles Gabriela Mistral, Pablo Neruda e
Gabriel García Márquez. Julgando-se “esquecido pela Academia”, o escritor
considerou a premiação “algo fantástico” e se revelou feliz com o galardão
máximo da literatura mundial. Vivendo entre a Europa e o país natal, ele
tem fortes ligações com o Brasil, onde esteve por várias vezes, inclusive
percorrendo o sertão da Bahia e de Sergipe para escrever o notável romance
“A guerra do fim do mundo”, uma de suas maiores obras. Em recente
entrevista, disse ele: “Em 1979, estive nos vinte e cinco povoados do
interior da Bahia e do Sergipe por onde Antônio Conselheiro teria passado,
ouvindo os filhos e os netos daqueles que o haviam escutado. Talvez uma
das maiores emoções que tive na vida foi estar no lugar onde ficava
Canudos. Sem dúvida foi marcante conhecer os lugares onde se passa “Os
Sertões”, de Euclides da Cunha, para depois escrever “A guerra do fim do
mundo”, sobre a Guerra de Canudos.”
Em homenagem ao novo Nobel, reproduzo aqui meu ensaio sobre esse romance
monumental e que mereceu aplausos do Prof. Fábio Lucas, um dos maiores
críticos nacionais.
CANUDOS E CONTESTADO
É uma observação antiga que “Os Sertões” têm inibido o aparecimento de
outras obras sobre os episódios de Canudos, reveladoras talvez de fatos
novos e com visões diferentes daquelas que foram sufragadas por Euclides
da Cunha. Realmente, seria uma tarefa das mais árduas aventurar-se no
terreno já palmilhado naquela obra monumental. Tenho lembrado tais
observações quando ouço queixas de que a nossa Guerra do Contestado ainda
não encontrou o seu Euclides. Se não temos uma obra daquela envergadura –
o que é um prejuízo – também não há receios na abordagem do tema, que
continua em aberto, permitindo o aparecimento de vários livros, como vem
acontecendo – o que é benéfico. Até que um dia, da síntese desses
trabalhos todos, acabe surgindo a grande obra definitiva, quando terá o
Contestado descoberto o seu Euclides.
A ÓTICA DE UM ESTRANGEIRO
Sobre Canudos, no entanto, foi preciso que um estrangeiro se aventurasse a
enfrentar o assunto e produzisse outra obra monumental, embora de
concepção diferente, como aconteceu com Mario Vargas Llosa e seu livro “A
guerra do fim do mundo” (Francisco Alves – Rio – 1981), traduzido por Remy
Gorga, filho. Escritor de reconhecidos méritos literários, Vargas Llosa
criou um romance empolgante em que a imaginação do ficcionista encontrou
campo fértil para plantar mil figuras e desenvolver seus feitos, sem
abandonar, porém, as linhas mestras dos acontecimentos históricos
comprovados. Para isso foi necessária intensa pesquisa, permitindo ao
autor colocar seus personagens e sua vivência dentro daquele contexto
exato em que se desenvolveram os fenômenos que culminaram com a destruição
de Belo Monte. Esse é um aspecto admirável do romance, mantendo o relato
vivo e atraente, ainda que o epílogo fosse de antemão conhecido. A
circunstância de que o leitor saiba o desenlace, por se tratar de uma
ocorrência histórica inalterável, é o grande desafio desse gênero e que
tem inviabilizado tantas tentativas entre nós. O escritor peruano, neste
romance, venceu tal desafio.
MÚLTIPLOS PERSONAGENS
As incontáveis personagens que se cruzam e entrecruzam, verdadeiras ou
fictícias, são tratadas com minúcia, como que biografadas naquilo que se
sabe de suas vidas, esboçando-se seus perfis morais e psicológicos em
consonância com seu passado. Assim acontece com Maria Quadrado, com o
Beatinho, com o Leão de Natuba, o Anão e com tantos outros. E nesse
trabalho a criatividade do ficcionista foi submetida a todas as provas.
Apenas a figura de Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel) me
parece um tanto distante, meio difusa, como se o escritor não contasse com
muitos dados e temesse dar largas à imaginação e com isso pôr a perder a
verossimilhança. O coronel Moreira César, por exemplo, aparece muito mais
nítido e claro nas suas reações, mais real e humano.
A ALMA DO POVO
Outro aspecto interessante é observar como o autor, mesmo sendo
estrangeiro, conseguiu penetrar tão bem a alma daquela gente sertaneja.
Seus personagens agem e reagem como brasileiros, coisa que não acontece
nos romances estrangeiros, onde o leitor do Brasil percebe atitudes que
nem sempre coincidem com as nossas. Creio que isso vem mostrar que nós,
latinoamericanos, não somos assim tão diferentes como nós próprios às
vezes nos imaginamos. Também a paisagem física é descrita com perfeição e
qualquer leitor, mesmo que não a conheça, não terá dificuldade em
visualizar as regiões desoladas em que os fatos aconteceram.
A obra de Vargas Llosa mostra que seu autor nutre, se não simpatia, pelo
menos compreensão e tolerância para com os seguidores do Conselheiro. É
evidente o prazer com que cria as figuras mais bizarras – aleijados,
enjeitados, doentes, cangaceiros e criminosos convertidos – e os vai
reunindo, um a um, em torno do Conselheiro, em Canudos. E todos eles, sem
exceção, por mais brutal que fosse seu passado, assumem a postura humilde
e submissa de verdadeiros crentes. Mesmo quando apelam às armas e se
entregam à guerra sem quartel, agem sem ódio às pessoas que combatem,
lutando com fatalismo na defesa de sua fé e de seu Chefe. Exemplo bem
claro, e a que o autor deu ênfase, é o de Pajeú, quando a decisão superior
lhe tirou a mulher por quem se tinha apaixonado. É claro que, em outras
circunstâncias, o ex-cangaceiro se rebelaria e tomaria a mulher desejada
pela força. A cara de Pajeú se contrai, “a cicatriz parece inchar-se,
rachar-se, e a boca se abre para perguntar ou, talvez, protestar.” Mas ele
reflete, faz a si mesmo algumas perguntas, e fica “outra vez inexpressivo,
verde-escuro, sereno, quieto, respeitoso, o chapéu de couro na mão,
olhando o catre.” É esse um dos grandes momentos do livro.
O CONSELHEIRO E SEU SÉQUITO
Narrando com fluência e sem omitir detalhes, o romancista vai mostrando as
andanças do homem moreno, que cobre sua magreza com um hábito de azulão,
pelos carreadores calcinados dos sertões. Restaurando capelas deterioradas
pelo tempo, cercando cemitérios relegados ao abandono, aconselhando em voz
suave os doentes e os infelizes, ele parece um beato como tantos outros e
passa meio despercebido, ainda que a cada novo aparecimento seja maior e
mais estranho o séqüito de seus seguidores. Nas paradas e nos pernoites em
vilas perdidas há sempre alguém do lugar, homem ou mulher, que anoitece e
não amanhece, desaparecendo com o monge andarilho. E a si próprios eles se
chamam “jagunços”, o que quer dizer revoltados. Essa revolta, aos poucos,
se dirige contra a República recém-proclamada, seus editais, sua moeda,
seus impostos, o casamento civil, os fazendeiros que a apóiam. A República
é o próprio Anticristo e urge combatê-la. Começam os atos de violência, de
início isolados, dispersos, depois planejados, centrados. E o bando
cresce, aumenta, incha: são centenas de pessoas, maltrapilhas, sujas,
analfabetas quase todas, mas convencidas de que só o Conselheiro lhes
poderá dar a felicidade, a justiça e a paz. O bando imenso não poderia
continuar nas andanças, era chegado o momento de encontrar o refúgio onde
não entrariam os impuros e lançar as raízes com a construção do Templo.
Avistaram ao longe a mansão avariada da Casa-Grande e os ranchos da
peonada do que foi a fazenda de Canudos, à margem do Vaza-Barris, e o
Conselheiro então declarou: “Ficaremos lá!”
O ARRAIAL DA ESPERANÇA
Felizes e esperançosos ali se instalam, num sistema igualitário tosco, em
que tudo era comum, e se organizam com base na experiência prática para
uma vida de sonho que não vai durar muito – apenas alguns meses. Iniciam
em pedras as obras do Templo, as lavouras, as casas, o armazém, a
assistência, a defesa. Todas as tardes ouvem a palavra do Conselheiro,
serena mas firme. Novos crentes, de todos os recantos, doentes, infelizes,
foragidos, perseguidos, desesperados, chegam a toda hora.
Mas a República não pode tolerar aquilo, pois é a rebeldia contra suas
normas, é um reduto monarquista, é o Estado dentro do Estado. Começam os
ataques, frustrados pela defesa dos jagunços, que vão se repetindo cada
vez com maior ênfase, com mais soldados e armas destruidoras, numa guerra
do fim que mundo, que convulsionou os sertões e balançou os alicerces da
jovem República. Gastaram-se fortunas, morreram centenas (inclusive
Moreira César e o Conselheiro), até que Canudos foi esmagada, sem que
ficasse pedra sobre pedra. Cenas terríveis, bárbaras, primárias, se
repetem de lado a lado até o desmoronamento completo do arraial da
esperança. Salvam-se uns poucos com a ordem de continuar a missão de
resgatar os fatos para a História.
CAUSAS E EXPLICAÇÕES
Vargas Llosa descreve tudo mas não pretende explicar, mesmo porque Canudos
não tem uma só explicação – mas são múltiplas e complexas. Aponta causas
antigas e profundas que se conjugaram no momento histórico – sociais,
econômicas, políticas, religiosas. Mostra o misticismo arraigado do
sertanejo, com tendência ao fanatismo, decorrente dos meios usados pelo
colonizador português para introduzir o catolicismo na região. O resultado
é este romance magistral que deixa no leitor, ao lado da sensação de ler
uma autêntica obra de arte, a melancolia provocada por tanta violência, a
rigor desnecessária, pois, como já se disse, o caso seria mais de educação
e diplomacia que de armas e de guerra.
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Este ensaio foi publicado originalmente no livro O PERTO E
O LONGE, Blumenau, Edição da Fundação “Casa Dr. Blumenau”, Vol. I, págs. 5
a 10.
Após o anúncio da premiação, novas edições brasileiras das obras de Vargas
Llosa estão sendo lançadas, inclusive do livro aqui comentado.
(30 de outubro/2010)
CooJornal no 708