23/10/2010
Ano 14 - Número 707
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
A restinga
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A restinga! Ali na canhada, entre dois coxilhões, ela se estendia por
quilômetros, campo a fora. Bem na baixada, através de curvas caprichosas,
o riacho escorria águas claras e geladas, alisando sem cansaço os seixos
encontrados no caminho. Em ambas as margens o mato fechado crescia
exuberante, formando uma muralha viva e esvoaçante de mil tons de verde.
Parecia a linha divisória entre campos, como se a natureza desejasse
demarcá-los por razões desconhecidas. Flores do mato, em cores vivas,
vermelhas, brancas, amarelas, roxas, enfeitavam um dos panoramas mais
lindos daqueles campos. A passarada, com seus cantos e gritos, não
silenciava nunca, revesando-se dia e noite na inesgotável alegria de viver
em liberdade.
Cortando-a em diagonal, uma estradinha coleante cruzava a Restinga. Seu
leito de chão vermelho semelhava uma cicatriz gigantesca no verde
campeiro. Por ela transitavam veículos e cavaleiros, levantando nuvens de
poeira, e todos acelerando a marcha na passagem, como se temessem alguma
coisa. É que a Restinga, apesar da beleza esfuziante, amargava a triste
fama de mal assombrada. Naquele trecho o viajante, mesmo o mais valente
não escapava do receio atávico que vem do sobrenatural. Persignando-se ou
balbuciando alguma oração, tratava de se afastar o quanto antes. A pressa
aumentava quando o acaso o levava à noite por tão temidas paragens.
Na Restinga, dizia a voz do povo, morava uma bola de fogo que perseguia os
cavaleiro estrada a fora, assustando as montarias, e dispersando tropas.
Nas noites escuras um cavaleiro fantasma troteava em silêncio ao lado do
viajante solitário, e isso por longo trecho só desaparecendo com as luzes
da cidade. Um negro velho, morto nos tempos de dantes quando cavava por
ali na busca de uma panela de ouro ao pé de um pinheirão, também costumava
se mostrar. Molambento e desgrenhado, corria pela estrada, gritando
palavrões e pragas. Pedrinhas e gravetos, jogados por mãos misteriosas de
dentro do mato, atingiam o viajeiros com precisão. Gritos, gemidos
dolorosos e risadas se ouviam com frequência ecoando nas coxilhas
silenciosas. E além disso, nas noites de sextas-feiras, um carro iluminado
e barulhento, apitando e rangendo, percorria aquele mato, com as roda
martelando trilhos inexistentes... Um mistério insondável, a Restinga!
Com escritório na cidade próxima, onde atendia às terças-feiras, muitas
vezes cruzei por ali, algumas delas à noite. Embora a experiência não
fosse agradável, jamais presenciei tais fenômenos, limitando-me a narrar
um pouco do muito que ouvi.
Com a construção da nova estrada, na mexida das pontes e aterros, a
Restinga quase desapareceu com sua fama de mistério e assombro. O
progresso parece ter desalojado os fantasmas que a habitavam.
(23 de outubro/2010)
CooJornal no 707
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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