02/10/2010
Ano 14 - Número 704
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
|
Enéas Athanázio
SOB SUSPEIÇÃO
|
|
Escritores e artistas de grande renome, em qualquer parte do globo, sempre
foram vítimas dos bisbilhoteiros que tudo querem saber sobre eles, suas
vidas e suas famílias. Ernest Hemingway, no auge da fama, estava sempre
mudando de lugar para poder trabalhar com tranquilidade. Georges Simenon
adotou a reclusão como modo de fugir dos importunos, trancava-se no
escritório com o guia telefônico do qual retirava os nomes dos personagens
e não recebia ninguém. Jorge Amado, por sua vez, tinha que se refugiar na
chácara de um amigo para encontrar a paz necessária à criação. Outros se
isolaram do mundo, como foi o caso de J. D. Salinger. Mesmo assim, a
vigilância em que viviam foi tão severa que pareciam estar sob suspeição.
Apesar das cautelas, muita coisa vaza sempre e acaba nas páginas de
jornais ou livros, na televisão e na boca do povo.
Bisbilhotice levada ao extremo, no entanto, foi a do escritor espanhol
Fernando Martinez Laínez que colocou sob real suspeita um punhado de
escritores da primeira linha. Em seu livro “Escritores e Espiões” (Editora
Relume Dumará – Rio – 2005) ele realizou profunda sondagem das vidas de
homens de letras que estavam acima de qualquer suspeita e acabou
concluindo que eles exerceram algum tipo de espionagem, ou seja, tiveram
uma vida secreta guardada a sete chaves e que ele acabou vasculhando para
colocar diante dos olhos ávidos dos leitores. Entre os investigados estão
nomes como os de Francisco de Quevedo, Cristopher Marlowe, Caron
Beaumarchais, François Rabelais, Aphra Behn e três autores dos mais
conhecidos do público brasileiro: John Le Carré, Graham Greene e ninguém
menos que Miguel de Cervantes, o genial criador do Dom Quixote.
Mestre da literatura de espionagem, Le Carré exerceu durante vários anos a
espionagem em favor da Coroa Britânica, experiências que utilizou em seus
livros que têm muito de memorialista. Segundo o autor, ele não negava essa
atividade paralela e secreta, depois que ela se tornou pública. Durante a
guerra fria, além de estudar, indicava à contra-espionagem britânica
estudantes suspeitos de espionar para a URSS. Foi, em suma, um declarado
dedo-duro. “Trabalho que o obrigava a trair amizades e lhe provocou
conflitos morais e dúvidas íntimas que, mais tarde, exporia em seus
livros” (p. 67). Apesar das dúvidas, no entanto, não deixou a função e
acabou tirando proveito delas em seus escritos. Segundo ele próprio deixou
claro, em 1993, acossado pela imprensa russa, “declarou publicamente que
ele pertencia ao Serviço Secreto britânico e que, durante seus anos no
Foreign Office, trabalhara como espião” (idem). Por razões não muito
claras e de caráter pessoal (medo?), e já então na Alemanha, foi se
afastando aos poucos da espionagem e começou a escrever. Veio então o
sucesso como escritor.
Mais tarde, talvez agrilhoado pela consciência, assumiu uma postura de
nítido antiamericanismo, tendo declarado: “Os Estados Unidos entraram em
um de seus períodos de loucura histórica, mas este é o pior de muitos que
me lembro. Pior do que o macarthismo, pior do que a Baía dos Porcos e, a
longo prazo, potencialmente mais desastroso do que a Guerra do Vietnã.” Le
Carré, após denunciar em palavras duras as mentiras contadas à opinião
pública pelo governo norte-americano, chega a dizer que “o antigo estilo
do colonialismo dos Estados Unidos está a ponto de estender suas asas de
ferro sobre nós” (p. 78). No meu modo de ver, já estendeu essas asas,
tanto que a Grã Bretanha, desde Thatcher, se colocou na posição de mero
satélite americano. Como tantos outros, Le Carré parece temeroso do
monstro que ajudou a consolidar.
Muito haveria a dizer sobre este livro, em especial sobre Graham Greene,
mas já vou longe demais. Fica para outra vez.
(02 de outubro/2010)
CooJornal no 704
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados
|
|