BIÓGRAFOS - O
escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899/1961) tinha aversão à
ideia de ser biografado em vida ou mesmo nos cem anos após sua morte. Não
obstante, é um dos autores que tem encontrado inúmeros biógrafos em vários
países, inclusive no Brasil. Muitas dessas biografias são integrais,
reconstituindo sua movimentada existência do início ao fim; outras são
parciais, atendo-se apenas a determinadas fases; algumas são conjuntas,
biografando em paralelo outras personalidades. Creio, porém, que o ponto
de partida, a inspiração para a maioria delas, foi “Ernest Hemingway, o
romance de uma vida”, de Carlos Baker, publicada entre nós pela Editora
Civilização Brasileira, em tradução de Álvaro Cabral (Rio de Janeiro –
1971 – 639 págs.).
Baker justifica, com
razão, a publicação do livro, ainda que contrariando o desejo do
biografado. Segundo ele, em vida dele muito do que está no livro não
poderia ser dito e depois de um século muitos documentos e testemunhos se
teriam perdido, dificultando ou mesmo impedindo a realização de um
trabalho desta ordem. E sem dúvida merece total compreensão, uma vez que
se dedicou de maneira integral à pesquisa e produziu uma obra única,
jamais superada por outras tentativas, e sempre citada como fonte séria e
confiável.
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RETRATO – Na
introdução ao livro, autêntico ensaio, Baker realiza um admirável retrato
psicológico de Hemingway, tentando desvendar a complexa personalidade de
um gênio da literatura, como tal reconhecido pela mais autorizada crítica.
Nele conviviam o homem de ação e o escritor, fato incomum no meio
literário e que no Brasil só encontrou paralelo em Monteiro Lobato, aliás
tradutor de Hemingway para o português. Enquanto o homem de ação era
atraído pelas viagens, caçadas, pescarias, safáris, esportes e mil outras
movimentações, o outro reclamava silêncio e solidão para poder criar.
Apesar dos acidentes e tribulações provocados pelo primeiro, o segundo
conseguiu realizar uma obra monumental, colocada entre as mais
significativas da moderna literatura universal. Nele estava o
individualista que sustentava a necessidade do escritor ser um marginal e,
por outro lado, vivia cercado de muitas pessoas e alargava cada vez mais
um imenso círculo de relações. Tímido em certas situações, poderia ser
fanfarrão e jactancioso em muitas outras; pragmático, moralista, corajoso,
cheio de orgulho, hedonista, rancoroso e, às vezes, sentimental até as
lágrimas. Desde garoto costumava afirmar que “não tinha medo de nada” e,
já adulto, revelou uma valentia heróica ao salvar o soldado ferido sob
intenso fogo de metralha, ocasião em que foi ferido com gravidade, durante
a I Guerra Mundial. Confessaria mais tarde que sentiu medo em muitas
situações. Além disso, foi um permanente curioso, interessado nos mínimos
detalhes, e ao mesmo tempo um tal imaginoso que nem sempre distinguia a
realidade da ficção.
Diante de figura tão
complexa e contraditória, é de fato difícil erigir uma biografia que possa
ser um monumento deveras representativo do biografado. Daí porque Baker
afirma que, apesar do muito que leu e estudou, este não é um livro
definitivo porque estará sempre aberto a novas descobertas e abordagens.
Apesar dessa enfática declaração, ninguém conseguiu superar a sua
obra-prima e ela continua sendo o melhor ensaio biográfico de Hemingway e,
- acredito eu, - jamais será superado.
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VETERANO DE GUERRA –
Depois de ter recusado a universidade, para desgosto do pai, Hemingway se
entregou ao jornalismo por algum tempo. Mas a guerra na Europa fervia e
ele sonhava em participar das operações para “ver as coisas de perto, ver
a guerra de verdade”. Tentou em vão se alistar, sempre recusado em virtude
de um defeito na vista. Mas não se conformou e encontrou outra solução:
alistou-se como voluntário na Cruz Vermelha, na condição de motorista de
ambulâncias no front italiano, comissionado como segundo tenente.
Na Europa, após uma viagem demorada, foi servir em Fossalta di Piave, na
região de Milão. Suas funções, além de transportar os feridos, consistiam
em abastecer as pequenas cantinas montadas para os combatentes. E foi lá,
numa noite terrível, que sofreu graves ferimentos.
Por volta de
meia-noite do dia 8 de julho de 1918, durante uma violenta salva de
morteiros austríacos, Hermingway se recuperou do choque e deparou com dois
soldados caídos ao seu lado. Um deles não respirava mais, estava morto; o
outro gemia e se contorcia de dor. Não titubeou um segundo, agarrou o
ferido e içou-o para os ombros. Começou a subir a encosta, em direção ao
posto de comando, quando foi atingido nas pernas por uma rajada de
metralhadora. Sem saber como, continuou andando com o colega ferido nas
costas e venceu o trajeto até o posto, quando perdeu os sentidos.
Transportado em condições precárias, chegou ao improvisado hospital de
campanha onde recebeu os primeiros cuidados e foram extraídos 28
estilhaços de seus pés e pernas (seriam, ao todo, mais de 200). Por fim,
depois de muita demora e confusão, chegou ao hospital militar de Milão,
onde foi internado e submetido a várias intervenções e a rigoroso
tratamento. Uma das pernas escapou por milagre da amputação.
A notícia de sua
bravura logo se espalhou e passou a ser considerado um herói. Recebeu
muitas homenagens e depois duas condecorações.
Tratado da melhor
forma, permaneceu internado por longo período. Depois, aos poucos, usando
muletas e bengala, já conseguia fazer alguns breves passeios. Tinha então
19 anos de idade.
O período de
internamento, se não foi agradável, também não foi dos piores. Mas foi
então que conheceu a enfermeira Agnes Hannah von Kurowsky, alguns anos
mais velha, por quem teve violenta paixão. Uma paixão nunca realizada e
que o acompanharia por toda a vida, influindo de maneira decisiva em seu
destino. Agnes seria transformada, mais tarde, em personagem de seu
romance “Adeus às armas.”
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FERIDA ABERTA –
Quase recuperado, embora coxeando e se amparando numa bengala, Hemingway
retornou aos Estados Unidos e só então se deu conta de que era uma
celebridade. Entregou-se com ênfase aos escritos, dando início à
publicação de sua obra, ao passo que se desenvolvia um conflito surdo e
silencioso com a mãe. Trocava cartas com Agnes, que ficara na Itália,
certo de que com ela se casaria. A enfermeira, no entanto, parecia recear
o casamento com aquele “garoto” e foi adiando o compromisso sob a alegação
de que não desejava abandonar a profissão.
Passado algum tempo,
a notícia explodiu como uma bomba em forma de carta que recebeu do outro
lado do Atlântico. Agnes rompia o namoro, informando que havia se
apaixonado pelo tenente napolitano Domenico Caracciolo, com quem pretendia
casar. Sem perceber “os indícios de um desastre iminente”, Hemingway
recebeu o golpe de peito aberto, sem qualquer preparo, e sofreu com
intensidade, como jamais lhe acontecera. Comentou alguém, na ocasião, “que
só uma cirurgia poderia aliviar seu sofrimento, caso existisse cirurgia
para esse tipo de mal.” Mas ele reagiu, entregou-se aos escritos, à caça,
à pesca e às viagens e parecia ter superado a crise, embora tudo faça crer
que a ferida permaneceria aberta por toda a existência.
A própria vida, no
entanto, acabou fazendo justiça pelas formas às vezes tortuosas. Quando
Caracciolo levou Agnes para apresentá-la à família, o casamento foi
vetado. “Ele levara-a a Nápoles – escreve o biógrafo – para apresentá-la à
família. Só então Agnes descobrira que Domenico era o herdeiro de um
ducado, após a morte de seu pai. A velha e orgulhosa família proibiu
terminantemente o rapaz de casar com ela, supondo (falsamente) que Agnes
era uma aventureira americana à caça de um título de nobreza italiana”
(pág. 76). Entre o ducado e a enfermeira, Caracciolo optou pelo primeiro.
E assim terminava tudo, segundo informava Agnes em carta a Hemingway,
talvez na esperança de um recomeço. Mas o orgulho do escritor falou mais
alto, ele procurou absorver o golpe e carregou a frustração pela vida a
fora.
Esse incidente deu
margem ao excelente filme “No amor e na guerra”, dirigido por Richard
Attenborough, estrelado por Chris O’Donnell e Sandra Bullock. Inspirou
ainda o livro homônimo “No amor e na guerra”, de Henry S. Villard e James
Nagel (Editora Rocco – Rio – 1999).
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A GERAÇÃO PERDIDA –
Entre trabalhos no sítio da família e empregos secundários em Chicago,
talvez com a esperança de cauterizar a dolorosa ferida, Hemingway decidiu
se casar com Elizabeth Hadley Richardson, também alguns anos mais velha.
Combinaram se estabelecer na Itália e trataram de amealhar algum dinheiro
para isso. Ele considerava a vida no país natal muito monótona e
provinciana, enquanto a Itália poderia oferecer tudo que um escritor possa
desejar.
Tomando conhecimento
dessa intenção, o escritor Sherwood Anderson, já célebre na época,
aconselhou-o a mudar de rumo e se fixar em Paris. Lá, dizia ele, um
escritor sério e talentoso encontraria ambiente propício para progredir e
poderia se lançar no cenário internacional. Hemingway e Hadley tiveram o
bom senso de aceitar a sugestão e seguiram para a Cidade Luz, levando na
bagagem várias cartas de recomendação escritas por Anderson.
Instalados
pobremente em Paris, pobreza que o escritor exagerou ao extremo em suas
memórias, travaram conhecimento com o mundo literário francês, em especial
com os americanos, exilados voluntários, numerosos na época. F. Scott
Fitzgerald, Ford Madox Ford, Ezra Pound, John dos Passos, Gertrude Stein e
sua companheira Alice B. Toklas, estavam entre os mais chegados. Pound e
Gertrude se tornaram bons amigos, tendo esta última, repetindo as palavras
de um mecânico, batizado para sempre aquele grupo como a “geração
perdida.” Também James Joyce e Sylvia Beach, proprietária da livraria
“Shakespeare & Company”, formavam em seu círculo.
Apesar das
premências financeiras, Hemingway produziu e publicou muito, fez numerosas
viagens e aprimorou seus conhecimentos literários. Admirador do pintor
Cézanne, tentava fazer com as palavras aquilo que ele fazia com as tintas.
Foi nesse período que afinou o instrumento do escritor – a linguagem.
Essa fase de sua
vida seria, mais tarde, recordada no livro “Paris é uma festa.”
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QUESTÃO DE
CONSCIÊNCIA – Enquanto isso acontecia, o mundo dava suas voltas e teve
início a Guerra Civil Espanhola. Já escritor consagrado, embora alheio à
política e às ideologias, Hemingway intuiu que aquela guerra constituía um
teste para a conflagração mundial que viria em seguida. Desde o início,
porém, manifestou seu repúdio pelo fascismo e considerou Mussolini a maior
farsa da política européia. Inconformado com a intervenção da Alemanha e
da Itália nos assuntos internos da Espanha, país pelo qual nutria profunda
afeição, não tardou a se credenciar como correspondente de guerra e para
lá se dirigiu. Permaneceu por muito tempo em Madri, cercada pelas tropas
rebeldes e resistindo como podia, hospedado no Hotel Florida, por ele
celebrizado em sua obra. Enquanto a metralha rugia lá fora e as granadas
explodiam nas proximidades, escreveu incontáveis reportagens para jornais
e revistas e a peça de teatro “A quinta coluna”, única a sair de sua pena
e que, segundo consta, jamais foi montada. (Contrariando essa informação,
Baker sustenta que a peça foi encenada na Broadway).
Acompanhado por
Martha Gelhorn, sua mulher naquele momento, e por outros correspondentes,
visitava o front, aproximando-se tanto quanto possível do próprio
campo de batalha, visitando as linhas de combate, os acampamentos, os
quartéis e todos os locais onde houvesse ação. Conheceu inúmeras pessoas
de todo o mundo e seu apartamento no hotel estava em permanente ebulição.
Não satisfeito,
participou da realização de um filme de propaganda da causa legalista (“A
terra espanhola”), viajou aos Estados Unidos para angariar fundos
destinados à compra de ambulâncias e até discursou para numerosas pessoas,
ele que detestava falar em público.
Lamentava a
destruição das cidades históricas do país e, acima de tudo, a terrível
mortandade de não-combatentes, incluindo mulheres, velhos e crianças. E
sentia imensa tristeza ao perceber o declínio das touradas, atividade pela
qual tinha verdadeiro fascínio, conhecia a fundo e muito escreveu a
respeito.
A sangrenta Guerra
Civil mais o uniu ainda à Espanha. E para sempre.
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A FINCA VIGIA –
Depois de
incontáveis andanças pelo mundo, como correspondente de guerra na Espanha,
na China, na Turquia e na II Guerra Mundial, além de safáris pela África e
viagens para assistir a touradas, esquiar, praticar esportes, caçadas e
pescarias, fixou-se em Key West, na Flórida, onde teve sua primeira
moradia própria. Foi então que adquiriu a célebre lancha “Pilar”, com a
qual se meteu em indescritíveis aventuras. Não satisfeito, adquiriu a
“Finca Vigia”, uma propriedade rural nas proximidades de São Francisco de
Paula, em Cuba, onde pretendia viver até o fim da vida. “Quando um homem
se sente em casa, fora do lugar onde nasceu, esse lugar é onde deve ir” –
sentenciava ele (pág. 184). Ali produziu importante parte da obra,
inclusive o romance “O velho e o mar”, que – segundo dizem – lhe valeu o
Prêmio Nobel de Literatura. Cercado por numerosos gatos, escrevia pela
manhã e depois se entregava aos passatempos favoritos, entre eles as
visitas à cantina “La Floridita”, onde consumia inúmeros daiquiris, sem
faltar o que levava para beber no retorno – o daiquiri do caminho. Com a
vitória da revolução castrista, doou a propriedade ao Estado cubano e se
retirou para Ketchun, nos Estados Unidos, onde faleceu em 2 de julho de
1961. Em mais uma contradição, um homem que tanto amava a vida se suicidou
com um tiro de espingarda.
A “Finca” abriga
hoje o museu mais visitado da Ilha e na cantina “La Floridita” foi erigida
uma estátua em homenagem ao escritor, no local e na posição em que ele
costumava ficar. O “Hotel Ambos Mundos”, no qual se hospedou com
frequência, conserva um mostruário em sua memória no aposento que ocupava.
Hemingway criou um
estilo próprio e inconfundível de escrever, sempre imitado sem sucesso, e
foi um mestre no diálogo. Existem campeonatos com seu nome, reuniões
periódicas de seus sósias e inúmeros filmes para o cinema e a televisão se
inspiraram em sua vida/obra. Documentários, entrevistas, ensaios, teses,
reportagens, análises críticas e livros a respeito dele e sua obra existem
às centenas. É ainda hoje um dos escritores mais lidos da moderna
literatura mundial.
O escritor foi
casado quatro vezes, com Hadley Richardson, Pauline Pfeiffer, Martha
Gelhorn e Mary Welsh, com quem vivia quando faleceu. Deixou três filhos:
John Hadley Nicanor Hemingway (Bumby), havido com a primeira esposa,
Patrick e Richard (Giggy), havidos com a segunda. Sempre desejou uma
filha, mas nunca teve.
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A OBRA
– Hemingway produziu
romances, contos, crônicas, uma peça de teatro, poesias, reportagens e
artigos variados. Entre suas mais conhecidas obras destacam-se:
“Em nosso tempo”
“O sol também se levanta”
“As ilhas da corrente”
“O verão perigoso”
“Adeus às armas”
“Morte ao entardecer”
“Por quem os sinos dobram”
“Ter e não ter”
“A quinta coluna”
“Do outro lado do rio, entre as árvores”
“O jardim do Éden”
“Paris é uma festa”
“Torrentes da primavera”
“O velho e o mar”
“Verdade ao amanhecer”
“Ernest Hemingway repórter – Tempo de viver”
“Ernest Hemingway repórter – Tempo de morrer”
“Contos” (Volumes I, II e III).
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BIÓGRAFOS – Muitos
autores têm se debruçado sobre a história da vida de Hemingway, um
verdadeiro romance, como a definiu Carlos Baker. Entre os melhores
trabalhos citam-se:
“Ernest Hemingway, o
romance de uma vida”, Carlos Baker, Editora Civilização Brasileira, Rio,
1971;
“Hemingway, o
escritor como artista”, Carlos Baker, Editora Civilização Brasileira, Rio,
1974;
“Ernest
Hemingway”, Anthony Burgess, Jorge Zahar Editor, Rio, 1978;
“Papá Hemingway”, A.
E. Hotchner, Editora Civilização Brasileira, Rio, 1967;
“O inferno privado
de Hemingway”, Milt Machlin, Gráfica Record Editora, Rio, 1967;
“O jovem Hemingway”,
Peter Griffin, Jorge Zahar Editor, Rio, 1985;
“Hemingway no amor e
na guerra”, Henry S. Villard e James Nagel, Editora Rocco, Rio, 1999;
“A boa vida segundo
Hemingway”, A. E. Hotchner, Larousse do Brasil, S. Paulo, 2008;
“Hemingway na
Espanha”, Eric Nepomuceno, L&PM Editores, Porto Alegre, 1991;
“Hemingway por ele
mesmo”, Martin Claret Editores, S. Paulo, 1990;
“O ponto de ruptura
– Hemingway, John dos Passos e o assassinato de José Robles”, Stephen Koch,
Difel, Rio, 2008.
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B. Camboriú, 10 de
novembro de 2009, 22h
(25 de setembro/2010)
CooJornal no 703