24/07/2010
Ano 13 - Número 694
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
MEMÓRIAS DE SARAMAGO
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Apesar do grande sucesso que vem fazendo junto aos leitores de língua
portuguesa e de países onde foi traduzido, o livro “As Pequenas Memórias”,
de José Saramago (Cia. das Letras – S. Paulo – 2006) não parece ter
despertado tanto interesse no Brasil. Como indica o título, nele estão
reunidas pequenas lembranças soltas, às vezes mínimas, dessas que o enigma
da memória humana retém, às vezes por toda a vida. São “as memórias
pequenas de quando fui pequeno, simplesmente”, informa o autor.
Embora pequenas, no entanto, as recordações nada têm de insignificantes
pelo que revelam da infância do autor e sua formação. Escritas sem
dramatizar os fatos evocados, muitos deles longínquos no tempo, acabam
gerando no leitor um sentimento algo melancólico e de pena daquele menino
sofrido mas que nunca se queixava, mesmo porque de nada adiantaria. Filho
de camponeses (o pai, depois, seria policial), teve uma infância
miserável, tão miserável como era a miséria européia no período
entre-guerras, com as economias devastadas e o desemprego campeando.
Residiu em autênticos casebres de paredes esburacadas, dormindo na cozinha
e na mesma cama de um primo, e depois em dependências de aluguel das mais
modestas. Sem luz, sem sanitários, sem aquecimento nos duros invernos. Só
calçava suas botas, únicas, para jornadas mais longas. Entre suas
ocupações estava a de conduzir a pequena vara de porcos à feira para
vendê-los, ou, em outras palavras, foi tropeiro de porcos como tantos que
conheci. É claro que jamais poderia imaginar que seria o único escritor de
língua portuguesa a receber o Nobel. Nem poderia, porque em sua casa não
havia material de leitura e ninguém cultivava esse costume. As raras
leituras que fez no período marcaram fundo e jamais foram esquecidas.
Ainda que repisando um velho lugar-comum, estas memórias são um romance.
O tratamento paterno foi duro, quase brutal, espécie de pedagogia da
porrada semelhante à que vigorou por aqui. Também na escola a psicologia
constituía coisa de somenos. Ele recorda como a mestra destronou o aluno
mais aplicado em favor do próprio Saramago, sem explicação alguma,
humilhando-o diante de todos os colegas. Em compensação, não há retoques
ou concessões nos retratos que pintou do pai e de outros. Como resultado,
criaram-se homens duros, mas, parece-me, tristonhos e talvez infelizes. A
despeito de tudo, progredia nos estudos e quando cursava uma escola
técnica já intuía que Hitler, Mussolini, Franco e Salazar eram farinha do
mesmo saco ou “colheres do mesmo pau” (p. 130). Afinou em silêncio aquele
brio que o impedia sempre de bater à porta de gente que o olhava de cima.
Foi assim, aos solavancos, tropicando pela estrada da vida, “esmagado sob
uma montanha de impossíveis” (p.119), que o menino da aldeia de Azinhaga,
no Ribatejo, banhada pelo rio Almonda, aprendeu a duras penas a escrever e
despontou para a glória das letras usando a língua de Camões. Também
esclarece, penso eu, a decisão estranha de viver em Lanzarote, pertencente
à Espanha, e que deu margem aos monumentais “Cadernos.” Porque são raros
os traços de saudosismo da terra natal.
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Tomei a liberdade de reproduzir esta crônica em homenagem a José Saramago,
falecido em 18 de junho de 2010, aos 87 anos de idade, em Lanzarote. O
fato consternou o mundo cultural e literário.
Foi o único escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de
Literatura.
Confesso que fiquei chocado com algumas manifestações contrárias a ele que
encontrei na Internet. Em nome da fé, o mínimo que lhe desejavam eram as
perenes chamas do inferno. O fato de discordar do pensamento único
dominante não mereceu perdão. Como advertem os estudiosos das relações
humanas, o ódio ideológico é o mais virulento de todos e não respeita nem
mesmo as fronteiras da morte. A velha máxima dos romanos de que “mors
omnia solvit” não tem mais validade.
(24 de julho/2010)
CooJornal no 694
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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