10/07/2010
Ano 13 - Número 692
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
A LINGUAGEM DA SERRA-ACIMA
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Em nosso Estado a diferença entre a língua falada nas regiões da
Serra-Acima e do Litoral é nítida. O palavreado, a entonação e o sotaque
diferem muito, tanto que, para quem conhece, umas poucas palavras já
indicam as origens de qualquer catarinense. Na região serrana, as origens
da população, o intercâmbio com o Rio Grande do Sul e o Paraná, a numerosa
presença dos italianos, poloneses e alemães, além de alguma influência
castelhana, geraram um linguajar característico, ainda que não seja um
dialeto, ao mesmo tempo conservador e criativo, uma vez que o povo, talvez
em face do isolamento em que permaneceu por longo tempo, manteve em uso
vocábulos caídos no esquecimento em outras regiões e também criou palavras
inéditas para designar coisas cujos nomes ignorava. Muitas dessas palavras
inventadas, segundo os linguistas, encontram fundamento nas normas da
língua, fato deveras surpreendente. Enfim, a linguagem usada naquela
região tem nuances próprias e características muito ricas, mas vem
sofrendo a inevitável influência da televisão que tudo vai igualando, e,
por assim dizer, raspando as arestas dos regionalismos, empobrecendo a
língua portuguesa como um todo.
A preservação dessa linguagem é importante porque integra a cultura
regional, por um lado, e, por outro, revela a riqueza e a variedade da
cultura do próprio Estado. A dificuldade, a meu ver, está na maneira de
realizar essa preservação, uma vez que nem mesmo as novas gerações locais
a conhecem. É uma tarefa que os historiadores convencionais não têm como
realizar, pois a linguagem regional não constitui a sua preocupação maior.
Diante disso, é a ficção dos autores regionais que tem registrado essa
linguagem, garantindo assim a sua sobrevivência. Em seus romances,
novelas, contos, crônicas e poemas eles vêm usando esse palavreado nas
descrições e nos diálogos de suas obras, tal como foi ou ainda é usado
pelas pessoas nos seus relacionamentos cotidianos. Em função disso, alguém
já observou que é mais fácil e autêntico reconstituir a vida na região
através das obras dos regionalistas que dos historiadores tradicionais.
Importante contribuição nesse sentido foi dada por Fernando Tokarski com o
“Dicionário de Regionalismos do Sertão do Contestado”, publicado pela
Editora Letras Contemporâneas (Florianópolis – 2004). Também autor de
novelas, contos e poemas regionalistas, além de viver na região do
Contestado, onde as peculiaridades da linguagem são ainda mais acentuadas,
ele realizou longo e paciente trabalho de pesquisa, tanto in loco, no
contato direto com o povo, colhendo seu material da própria realidade,
como também nas obras dos regionalistas, desde Tito Carvalho, Edson
Ubaldo, José Alberto Barbosa, eu próprio e outros, além de se valer das
obras de sua autoria. Cada verbete registrado é seguido de seu significado
corrente e, sempre que possível, com exemplo extraído de trechos das obras
dos autores. Fiquei satisfeito ao constatar que Tokarski e eu fomos os que
deram as maiores contribuições. Graças ao incansável trabalho dele, a
Serra-Acima conta agora com um dicionário que faltava, registrando de
forma metódica toda a imensa riqueza da fala regional.
Além de constituir um aprendizado para os originários de outras regiões e
uma recapitulação para os nativos, o “Dicionário” é uma leitura deveras
curiosa. Algumas palavras dele retiradas devem soar estranhas aos ouvidos
de pessoas de outras latitudes, embora sejam usuais na região serrana e,
por outro lado, um atrativo a mais para os linguistas. Vejamos alguns
exemplos colhidos ao acaso: abichornado, abombado, aborrido, afilipado,
bicharia, bispar, bocó, cainhar, calmariar, caborteiro, cetra, culepe,
embombachado, encarangar, encrespar, entojado, escramuçar, forge, garrar,
guachivo, guapeca, homarada, jaguara, lançante, lavareda, liso, lubuno,
lombeira, macaio, maleva, matear, oriar etc. Alguns desses vocábulos
poderão, eventualmente, ter outro significado na linguagem comum. Assim,
por exemplo, “liso” significa escorregadio, enquanto lá designa o copo em
que é servida a cachaça nas bodegas ou bolichos (bares).
Dentre as influências sofridas pela região, conclui o autor que o
tropeirismo foi o que deixou maiores marcas, “sobretudo naqueles vocábulos
ou expressões relacionados à vida campeira, quer na pecuária ou na
agricultura...” (p. 8). Trouxe também interpretação própria sobre as
origens e o significado de alguns vocábulos, o que constitui uma
contribuição pessoal ao conhecimento da linguagem regional. Relacionou
ainda os nomes de numerosas plantas e animais comuns naquelas paragens e
termos provenientes dos colonizadores, como o polonês, o ucraniano e o
alemão. É claro que se valeu de intensas e prolongadas pesquisas na
volumosa bibliografia existente, palmilhando páginas sem conta. Trata-se,
enfim, de um trabalho de consulta indispensável a todos que queiram bem
conhecer nosso Estado, pelo qual Fernando Tokarski está de parabéns.
Seria falsa modéstia de minha parte deixar de registrar que o livro foi
dedicado a mim, o que me provocou agradável surpresa.
(10 de julho/2010)
CooJornal no 692
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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