26/06/2010
Ano 13 - Número 690
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
RECORDAR É VIVER
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Para os otimistas, recordar é viver; para os pessimistas, recordar é
sofrer duas vezes. Seja como for, existe uma tendência natural da pessoa
voltar os olhos sobre o passado e evocar momentos que se perderam no
tempo. Segundo Norberto Bobbio, existiria um tempo da memória e ela muitas
vezes se mostra tanto mais nítida quanto distanciados estão os fatos. “Se
o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o
mundo do passado é aquele no qual, recorrendo às nossas lembranças,
podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos...” – escreveu ele. É verdade
que psicólogos modernos, louvados em pesquisas, afirmam que não nos
lembramos dos fatos como realmente ocorreram mas como deles recordamos
pela última vez. É por isso que existe a tendência de rotular as memórias
de autoficção, uma vez que nelas entram as lembranças mescladas à criação
de quem lembra. Mas é inegável que existe hoje grande número de
personalidades que tratam de colocar em livros as recordações do que
realizaram ao longo da existência, como se prestassem contas do tempo
gasto. Escritores, artistas, políticos, viajantes, profissionais de
inúmeras áreas, todos se debruçam sobre o teclado para registrar suas
lembranças. O resultado é a verdadeira torrente de livros de memórias que
se encontra hoje nas livrarias.
Dentre os bons livros do gênero que li nestes tempos incluo “Minhas
Memórias”, de autoria de Hélio Pereira Bicudo (Martins Fontes – S. Paulo –
2006). Homem de larga vivência, com experiência no Ministério Público, no
Executivo e no Legislativo, em todas essas áreas foi bem sucedido, ainda
que relembre dificuldades encontradas no reino da política, no interior do
único partido a que se filiou – o PT. Essa circunstância o levou a
abandonar a atividade política, mesmo depois de ter sido deputado federal
por duas vezes e vice-prefeito. As restrições que sofreu pareciam derivar
do fato de que fosse um operário intelectual, aliás, incansável, e não um
operário no sentido estrito, criando assim obstáculos que impediram sua
permanência no partido. O espírito de classe no interior da agremiação
revelou-se um fato, mesmo que ele não acreditasse na sua existência. Em
política, o idealismo não basta.
Desencantado da atividade política, Bicudo se volta para os direitos
humanos, tema que sempre esteve em suas preocupações, agora em dimensão
internacional. Em 1998 é eleito membro da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos
(OEA). Nessa condição, visita diversos países, apresentando depois
relatórios circunstanciados sobre a situação neles reinante. Manteve
sempre uma posição de estrita imparcialidade, inclusive em casos
espinhosos em que se procuravam soluções acomodatícias, como na invasão de
Granada pelos EUA. Teve ocasião de verificar em pessoa a ostensiva
violação dos direitos da pessoa em países como o Chile, onde muitas eram
as atrocidades. Após anos e anos de trabalho nessa área, sente o “quanto é
desolador constatar que se trata de um assunto que não encontra o cuidado
devido em nossa sociedade. O tema só passa a ter relevância quando setores
da classe média são atingidos...” (p.196). Não obstante, não se furta a
presidir a Comissão Municipal de Direitos Humanos (CMDH), criada pela
Prefeitura de São Paulo em 2002, esforçando-se de todas as formas pelo
real e efetivo cumprimento de suas atribuições. Apesar da posição algo
quixotesca no país, sua atuação surte razoável efeito, interferindo com
eficiência em inúmeros casos. Sua atuação corajosa e desprendida é
reconhecida pelos setores bem informados da comunidade, ainda que a
Comissão não contasse com muita simpatia da mídia.
Por tudo isso, é pena que a vida e a obra de Hélio Bicudo não sejam mais
conhecidas do grande público e que este livro esteja ausente das relações
dos mais vendidos. Bem que mereceria.
(26 de junho/2010)
CooJornal no 690
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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