Cunegundes foi um
cão de rua, sem dono, um cão rafeiro ou guapeca, como diriam os campeiros.
Vivia da caridade alheia, como mendigo canino, sempre pronto a festejar
quem lhe desse a mínima atenção ou, com mais freqüência, a meter o rabo
entre as pernas e fugir espavorido dos pontapés e maus tratos.
Provavelmente SRD (sem raça definida), perambulava pelas ruas de São
Paulo, no longínquo início do século passado, e era de todos conhecido.
Mísero vira-latas sem eira nem beira.
Existia por lá,
nessa época, um grupo de rapazes inteligentes e talentosos, dentre os
quais alguns fariam renome, como Monteiro Lobato e Godofredo Rangel.
Formavam o Grupo do Minarete, ou o Cenáculo, onde os cenaculistas ou
cenaculóides viviam as mais estranhas e criativas experiências. Como
lembra Trajano Pereira da Silva, um dos mais consumados lobatianos
que tive a sorte de conhecer, “os cenaculistas ou cenaculóides põem de
lado o Cenáculo e se transformam em Cainçalha. Ao todo, doze cães, cada um
com sua característica. Começa com Ricardo Gonçalves, cão lírico que
ladra à lua, e termina com o Albino Camargo, o Cunegundes. E
Lobato chama a atenção de Rangel: Lembra-te do Cunegundes, aquele
vira-latas que vivia pelos cafés e restaurantes, um velho cachorro à-toa,
sem dono?” (A Barca de Gleyre, Vol. I, Carta de 10/01/1904, PS). Ricardo
era poeta; Albino pouco amigo da limpeza.
“Pois bem, -
prossegue Trajano, - ao prefaciar “Ipês”, de Ricardo Gonçalves, Lobato
lembra com carinho de toda a Cainçalha e traz à baila o Cunegundes, “um
cão de rua que nessa época vivia em São Paulo, pelos cafés.”Este texto
está no livro “Prefácios e Entrevistas” e o velho cão é lembrado na nota
de rodapé número 9. Lembra Trajano ainda que “no segundo volume de “Cartas
Escolhidas”, no ano de 1943, jubileu de “Urupês”, em carta a Lino Moreira,
e no ano de 1944, em carta a Albino, o sarnento Cunegundes torna a
aparecer. . . Entretanto, a maior homenagem aparece em “Urupês”, no conto
“Um Suplício Moderno”, quando o cavaleiro Biriba e a cavalgadura, a égua
que de tanto sofrer perdera a feição cavalar, foram considerados pelos
itaoquenses como o estafeta da triste figura e mais a sua bucéfala. .
.Lazarento como eles, - escreveu Lobato, - só o Cunegundes, cão sem dono,
coberto de sarnas e que perambulava a esmo pela cidade, fugindo a moscas e
pontapés. Pois não lhe mudaram o nome para Biriba? Cachorrada!”
Conclui Trajano: “Só
um espírito observador e sensível poderia lembrar pelo resto da vida de um
pobre animal, nosso irmão – diria São Francisco de Assis. Cunegundes,
encontrando abrigo nas páginas imortais dos “Urupês”, encontrou a
perenidade. Agora, num livro mais recente, pelo menos para mim, quem
encontro eu lá? Cunegundes, em carne e osso, em páginas evocativas!” (O
livro referido é “Tempos Passados”, de Cícero Marques, Edição de 1942,
págs. 92/99).
Trajano Pereira da
Silva aponta mais um caso onde se operou o milagre da literatura. Quando
figuras que foram poderosas e célebres em seu tempo, temidas ou
reverenciadas, que faziam e desfaziam, mandavam e pintavam, purgam hoje o
mais completo ostracismo, Cunegundes, pobre, sujo, abandonado e feio,
entra na história pela porta de uma das maiores obras da literatura
brasileira. Fato que faz lembrar aquelas páginas em que Gilberto Amado
relaciona figuras poderosas de ontem que jaziam esquecidas já naqueles
tempos e das quais não resta hoje um fiapo de memória.
(19 de junho/2010)
CooJornal no 689