13/03/2010
Ano 13 - Número 675
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
NERUDA E O BRASIL
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Pablo Neruda (1904/1973) tinha fascinação pelo Brasil, sentimento sempre
retribuído pelos incontáveis leitores brasileiros que conquistou. Ricardo
Neftali Reyes y Basoalto, nascido em Parral, no Chile, adotou em 1920 o
pseudônimo pelo qual ficou conhecido em todo o mundo, vinha ao Brasil
sempre que podia e cultivava com carinho uma fraterna amizade com Jorge
Amado e Zélia Gattai, dos quais era compadre e fora companheiro nos tempos
de exílio na Europa. A célebre casa do Rio Vermelho, em Salvador, onde
residia o casal de escritores, guardou muitas marcas da presença do poeta
chileno, sua personalidade exuberante e os ecos da sua voz em costumeiras
declamações dos próprios versos. No livro “A casa do Rio Vermelho” (Record
– Rio/S. Paulo – 1999), contendo uma parcela das memórias de Zélia Gattai,
as referências ao poeta são frequentes, como em outros livros da autora.
Num dos capítulos mais interessantes, relata ela que Neruda foi à Bahia
com o evidente propósito de se despedir. Ele pressentia que o fim estava
próximo. Logo de chegada, pediu que não perguntassem por ninguém, pois
“estão todos mortos e somos dos raros que ainda estão vivos.” Apesar desse
começo lúgubre, a visita foi alegre e descontraída. A notícia de sua
presença se espalhou e a casa se encheu de escritores, poetas, artistas,
músicos, jornalistas, gente da área cultural. Neruda declamou, com sua voz
pausada, Matilde Urrutia, sua mulher, cantou uma canção com letra de
Neruda: “Principe de los caminos, hermoso como um clavel, enbriagador como
el vino, era dom José Miguel...” E todos puderam desfrutar com liberdade
da companhia daquela figura carismática que parecia estar em casa sempre
que vinha ao Brasil. Organizaram à sua revelia um recital de poesia na
Escola de Teatro e um encontro na Ordem dos Trovadores aos quais ele
compareceu, declamou, falou à multidão de admiradores, conversou e
autografou. Repentistas e trovadores o saudaram em versos de improviso que
muito o encantaram.
Mesmo tomando algumas notas em cadernos, Neruda afirmava que não
escreveria suas memórias. “Um livro de memórias jamais tem fim. A vida
continua. Novos fatos vão acontecendo...” – dizia ele, longe de imaginar
que um dia seu livro de memórias seria dos mais lidos de toda sua obra.
Foi Matilde, após a morte do poeta, quem organizou os originais e,
driblando os perseguidores, conseguiu levá-los para a Venezuela, onde se
transformaram em “Confesso que vivi”, uma das mais fascinantes
autobiografias de toda a literatura. No Chile, o país natal, a polícia de
Pinochet movia encarniçada perseguição ao poeta, mesmo tendo ele falecido
poucos dias após o golpe. Uma perseguição que prosseguiu após a morte,
tanto que o sepultamento do poeta foi cercado de imenso aparato policial,
como se temessem que pudesse reviver e colocar em perigo a ditadura
recém-estabelecida. A notícia de que Matilde Urrutia organizava os
originais das memórias do poeta provocou uma constante vigilância em sua
casa e foi espionada até mesmo quando esteve no Brasil, onde policiais a
seguiram desde que desembarcou. São lembranças dos momentos negros em que
as ditaduras grassavam na América do Sul, inclusive no Brasil.
“Confesso que vivi” e “Canto Geral” estão entre os livros mais lidos de
Neruda. A L&PM Pocket vem publicando as obras do poeta em livros de bolso,
contribuindo assim para a sua maior divulgação. Neruda foi dos raros
escritores latino-americanos a receber o Prêmio Nobel e tem uma legião de
admiradores em todo o mundo. Suas casas, em especial a de Isla Negra,
atraem milhares de curiosos. A implacável perseguição que sofreu em seu
país de nada adiantou. Enquanto os perseguidores desapareceram da memória
coletiva, a dele está cada vez mais viva. (09/09/09)
(13 de março/2010)
CooJornal no 675
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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